CPT01
INQ Semeia alguma coisa? INF Não semeio nada. Tenho aí (...) um ferragialito aí pegado às casas, pouco. (...) Eu estou-me a governar com o dinheiro que me dão da Casa do Povo. É o com que me estou a governar. Agora já há dois ou três meses que eles não mandam nada. Não têm pagado. E assim é que me vou governando. INQ Mas dá-lhe para viver? Ou?... INF Diga. INQ Dá-lhe, chega-lhe para viver o que de lá recebe? INF Ora, (...) são quinhentos escudos que me dão. Mas eu sou um homem muito poupado, à força, porque não posso beber, não posso comer muitas vezes coisas. E um homem rijo que... Não tenho mais remédio que é poupar, porque eu não posso comer as coisas.
CPT02
INQ Os meus amigos também queriam saber onde é que o senhor aprendeu a ler e a escrever? INF Ora, aprendi (...) aqui (...) em São Pedro do Corval, mas nunca passei da segunda classe. Porque havia ali um professor já muito velhinho. Ora, foi professor do meu pai e dum meu tio que tinha mais sete anos que o meu pai. E no meu tempo ainda era professor, mas era já muito velhinho! E ele gostava muito de mim! Gostava muito de mim. Era muito mau mas gostava muito de mim. Nunca me batia. Nunca me batia! (...) Eu fui para lá com sete anos. Mas a minha mãe sabia ler e começou-me a ensinar as primeiras letras. E eu comecei a aprender porque eu tinha esse sentido para aprender. Quando (...) entrei para a escola, já sabia metade (...) do livro da primeira. E depois quando foi ao fim de quinze dias ou três semanas de andar à escola, já sabia o resto do livro da primeira. (...) O livro da primeira, naquela escola, estava escrito nas paredes. Nas paredes é que estava escrito, tudo à roda da casa. E ele com uma cana acenava e eu ia sempre dizendo, sempre dizendo, sempre dizendo. E um dia disse-me assim... Andávamos muitos na mesma, sim, na mesma lição. Mas ele os outros não sabiam e eu é que dizia. E depois como eu dizia, diziam eles. E o professor fez-me assim: mandou sentar os outros - nós estávamos de pé -, mandou-os sentar e disse-me assim: "Tu ficas aí". Eu fiquei. O homem começou a acenar com a cana e eu lendo. Ele acenando e eu lendo; ele acenando e eu lendo; e eu lendo; e eu lendo. E depois, assim que viu que era já maçada de mais - li para ali uma porção (...) de lições! -, assim que viu que era maçada de mais, (...) e ficou assim a olhar para mim, encostou-se à cana e fez-me assim: "Quem é que te ensina"? "É a minha mãe". "Então qual é que sabe mais: sou eu ou a tua mãe"? E eu - ora, eu tinha sete anos - fiz-lhe assim: "É a minha mãe". O homem voltou as costas e foi-se embora. E eu fiquei assim assente (...) , assim a olhar para ele. E ele foi-se sentar lá ao pé da secretária dele e depois de estar sentado, fez-me assim: "Senta-te". E depois quando (...) um dia que a minha mãe lá foi e esteve-lhe contando a história. E ela fez assim: "Ah Senhor Professor, desculpe. Desculpe porque isto são crianças". "Não! Então ele disse uma verdade! Ele não sabe se eu se sei muito nem se sei pouco. Eu ainda o não ensinei! E então ele não sabe se eu sei muito nem se sei pouco"! Risos (...) Passou-se então assim e depois (...) continuei a ir à escola, sempre aprendendo bem, sempre aprendendo bem, sempre, sempre, sempre. Depois ele deu-se em fazer velhinho. (...) Dava um mês escola, dava dois, e estava dois e três meses sem lá ir. E eu, o meu pai era pobre, arranjou uns borregos e eu comecei a guardar aqueles borregos. E depois concertei-me para um monte. Ainda hoje me lembra quanto eu fui ganhar. INQ Quanto era? INF Fui ganhar nove tostões por mês. Num mês ganhava nove tostões. Era então a de comer! INQ Isso era há quantos anos? Há... INF Ora, tinha eu... INQ Há sessenta anos? Sessenta? INF Sessenta? Sessenta, sessenta e um, uma coisa assim. Eu tenho setenta e três. (...) Faço setenta e três anos no dia 14 deste mês de Maio. (...) Não entrou hoje? (...) De hoje a treze dias faço setenta e três anos. E eu fiz lá, nesse concerto, fiz lá o quê? Fiz lá os treze anos. Pois. Fiz lá os treze anos. E depois abalei de lá (...) fui para uma horta, para uma quinta. Pronto e (...) assim fui passando o tempo até fazer-me já moço. Depois quando comecei a trabalhar como os homens, comecei a ganhar dez tostões por dia - naquele tempo era assim, os dez tostões por dia - e de comer. Pois. Bem, como que é assim. A minha vida tem sido assim. Tem sido um romance! Mas sempre triste, sempre a penar! Depois dei a ser doente. Nunca casei. (...) Estive muito ano com a minha mãe. Enquanto tive aqui a minha mãe, coitadinha, sempre demos-se muito bem, pois, que era a minha mãe. Morreu a minha mãe, fiquei sozinho. (...) E sempre doente, sempre doente, sempre doente, e sempre doente. E terei que ir assim até ao resto. (...) Quando chegar ao fim, começarei outra vida, não é verdade? Em chegando ao fim desta vida, começo outra! Vou para a eternidade. Pois. Como que é assim.
CPT03
INQ1 O que é que queria dizer "o pardal canta o 'grepe'"? INF "O pardal canta o 'grepe'"? INQ2 O que é o 'grepe'? INF O 'grepe'? É roubar. E ele o canta. INQ1 Rhum-rhum. INF "Treme-treme-treme-treme-treme-treme". Pois. INQ2 Ai 'grepe' é roubar? INF Pois. É por isso que "o pardal canta o 'grepe' quando a seara está grada, ao dono chama: "Charepe"!, e vai-lhe comendo a cevada". Pois.
CPT04
INF Ora, ele foi ele para lá um... Tem lá uma filha (...) e um neto (...) e o genro, e foi ele para lá um homem de... É mais velho do que eu um ano. Chamaram-no para lá. INQ Para a América? INF Não, (...) para aquele sítio. O que é não sou capaz de dizer agora o nome. INQ Mas fica fora de Portugal? INF Hã? INQ Fica fora de Portugal? INF Fora de Portugal. É outra nação. Ai que não sou capaz de dizer o nome. A América do Sul. Na América do Sul é que essa gente está. INQ Isso já fica longe! INF Pois.
CPT05
INF Eu não lhe disse outro dia que a minha vida agora em velho que é quase comparada à de Luís de Camões? Não lhe disse eu?! INQ1 Pois, pois. INQ2 Pois. INF Luís de Camões, coitadinho, assim que o apanharam velho, tudo fazia pouco dele! INQ1 Pois. INF E ele dizia então: "Já estou velho, já estou velho"! Já tenho dito esta palavra eu muita vez. Sim senhora. INQ2 Pois. INF "Já estou velho, já estou velho"! Porque quando era novo (...) não podiam fazer mangação de mim, que eles (...) nem abrir a boca sabiam. Eu cortava-lhe os fios de todas as maneiras. Pois. Ele não havia (...) quem fosse capaz (...) de abrir a boca ao pé de mim, (...) quem fosse capaz de dizer nada. INQ1 Pois. INF Pois. INQ1 Ai p-, para essa gente não vale a pena abrir a boca, tio Hermes. INF Pois. Ainda agora há poucos dias, ali (...) em São Pedro do Corval, esteve uma a mangar comigo, a fazer assim quase pouco de mim. E eu nem uma resposta lhe voltei. Nunca lhe disse nada, nada, sequer (...) ! Nada! O outro pessoal a olhar para mim, mas eu nunca voltei uma resposta. INQ1 Pois, essas pessoas não merecem que se responda. INF Pois. INQ2 Não ligue. INQ1 ... INF Não lhe voltei uma resposta. Eu não lhe disse nada.
CPT06
INF Mas que preciso tinha ele de mangar? INQ1 Mas era por isso mesmo, por não saber. INF Ouça: uma vez estava de conversa com ele mais a mulher. Estávamos de conversa lá no quintal dele. E não sei como foi que eu falei em orquestra - em orquestra. INQ1 Sim. INF A palavra é assim dita: "orquestra", não é verdade? INQ1 Pois. INQ2 Rhum-rhum. INF E ele, estávamos assim a falar em toques e coisas, que eu vim a falar em orquestra. Estava ele e a mulher. Começa-me ele a dizer: "Orquestra!? Então o que é uma orquestra"? "É orquestra". Começa a mulher: "Ah, ah, ah, ah! Orquestra?! Ah, ah, ah, ah, ah, ah! Orquestra"! Eu calei-me, não disse mais nada. Pois se já estavam (...) a chatearem-me, a dizerem aquilo que não deviam dizer, com o que eu calei-me. (...) Eles estavam a mangar de mim, aonde eu é que podia mangar deles, não é verdade? INQ1 Claro. INQ2 Por não saberem. INF Mas então?! Se se dera o caso se houvesse ali mais família, eram (...) os próprios que os ajudavam a eles, não era a mim. Pois. INQ2 Isso era, isso era por ignorância, tio Hermes. INF Diga? INQ2 Era por ignorância deles. Deixe estar. INF Pois. E era um meu irmão. Eu estava anos sem ir à casa dele e agora já tenho chorado por ele. INQ2 É sempre, é sempre a mesma... INF Se fosse eu que morresse... Se fosse eu que morresse, ele talvez faz de conta que fosse uma festa. INQ2 Ah, isso talvez também não. INF Pois. Para ele faz de conta que era uma festa. Ele não me ligava importância. INQ2 Pois. INF Ele morreu no hospital em Reguengos. Eu fui lá vê-lo duas vezes, ele não abriu os olhos. E até um dia caiu lá da cama, (...) ainda fez aqui qualquer coisa, 'qualqueres' arranhões na cara. Cheguei-o a beijar, que era meu irmão. Pertencia ao meu sangue. Mas a mulher dele que me odiou e depois dizia-lhe mal de mim, a ele, e ele chegou a pontos que já dizia mal de mim à mesma. E cheguei a prestar-lhe coisas, fiz tudo quanto pude por ele, e ele cada vez a ligar-me menos. Chegámos-se a juntar além em baixo - de conversa, mais outros, além onde está (...) um coisito além, quando se entra no povo, do lado esquerdo -, a juntarmos-se além. INQ1 Rhum. INF Às vezes, juntávamos-se além uns poucos. Íamos para além, conversávamos e coisa. Chama-lhe a gente até o Jardim das Mentiras. Porque (...) ali diz-se tudo, todas as mentiras. Cada um diz aquilo que lá lhe parece. E nós chamamos-lhe o Jardim das Mentiras. Ele, eu não podia dizer nada que ele estava logo atirado a mim. Sim senhora. E há aí mais. Há aí mais.
CPT07
INF Eu digo que agora sou sozinho. Sozinhito, não tenho ninguém que puna por mim. (...) Sei lá o que é que eu hei-de fazer?! INQ1 Ó tio Hermes, sabe que há, há um ditado que diz que os cães ladram e a caravana passa. Portanto, deixe-os falar... INF Dizem o quê? INQ1 Os cães ladram e a caravana passa. INF Ah, pois. INQ1 Portanto, deixe-os falar e pronto. Não lhes ligue. Eles não merecem a pena. INF Não senhora! Se eles não sabem nada ao pé de mim! INQ1 Eles não valem... INF Então eu conheço isso. Mas eu é que não posso falar diante deles. Porque eles só falam pelo lado do torto. E põem-se feitos doutores; parte deles não sabem uma letra sequer ao menos! Eu também sei poucas. É verdade que sei poucas. Mas estas poucachinhas que sei ainda são aproveitadas, que (...) eu é que escrevo as minhas coisas, não é verdade? INQ2 Pois. INF É por isso que ainda são aproveitadas. Ainda muita gente... Tem vindo muita gente aqui à minha casa aproveitar essas letras mal feitas que eu faço. Vomecês não sabem, mas há aí muito quem saiba. Eu há mais de trinta anos que ensino gente a cantar - a cantar cantes feitos por mim e versos. Virem aqui grupos de pessoas a aprender a cantar cantes feitos por mim! E eu ensino-os a cantar e eles saírem por essas terras, cantando e dançando aquilo que lhe eu ensino! Olhe que isto (...) é mais certo que aquele sol que nos alumia. INQ1 A gente sabe. INF Se eu sou capaz de dizer isso publicamente aí no meio dessas ruas, que ninguém me pode desmentir. INQ1 Pois. INF Sim senhora. Essa coisa: "Tu dizes que a Primavera em tempo assim era, eu não acredito", isso é cantado. INQ1 Rhum-rhum. INF Isso foi (...) um grupo que eu ensinei a cantar. E outras coisas mais. INQ1 Pois, pois. INF Uma vez ensinei também um grupo... Só me lembra (...) um verso e lembra-me então o estribilho. E (...) foram dançar isso e cantar por essas terras. É assim. Por acaso, só me lembra um verso, que é o primeiro: "Procurei uma menina, era nova na Herdade, muito bem me respondeu: "Rapaz, já 'falastes' tarde". Ele depois diz assim, o estribilho é assim... Ah, o estribilho é assim: "Vai na roda e cantemos as nossas lindas cantigas, é assim que nós podemos entreter as raparigas. Entreter as raparigas, (...) que fique tudo contente, porque nós gostamos delas e elas gostam da gente".
CPT08
INF Eu ensinava até a tocar, a acompanhar, porque eu também percebo disso! INQ1 Rhum-rhum. INQ2 Também tocava? INF Também tocava, pois. Os tocadores quando começavam os ensaios, poucos entravam com os cantes poucos entravam com os acompanhamentos. Eu é que tinha que fazer o acompanhamento para o tocador ouvir e aprender. INQ2 Pois. INF Mas isto foram mais de trinta anos que eu ensinei coisas assim, umas dum feitio, outras doutro. (...) Era pelo Carnaval, cheguei a ensinar três grupos, cada um de seu feitio. Nem um cantava o mesmo que cantava o outro. E eram com dez ou doze versos, ou vinte, conforme era. Fazia um verso para cada pessoa. Pois. De maneiras que, vai-se a ver (...) , nunca passei disto. Nunca passei disto! Sempre tive pouca sorte. Sempre tive pouca sorte.
CPT09
INF Eu hoje já sou velho, mas dantes quanto mais cantava, mais a fala aclarava. Não senhora! Eu nunca enrouquecia. Eu cantava um dia inteiro e uma noite, e duas, e três, e quanto mais cantava, mais a fala aclarava. Eu nunca encontrei uma fala que voltasse a minha. (...) Ainda hoje, essa gente nova, ainda hoje (...) não sabem cantar ao pé de mim. Não senhor! Não! Isso sim! Sopro para avivar o lume Em São Pedro do Corval, havia ali pessoas que cantavam bem - (...) boas, que cantavam bem. Mas no fim, em se juntando comigo, (...) já faz de conta que não eram nada. Chegou a haver castanha por causa do meu cante. Sim senhora! Haver castanhas por causa do meu cante! Haver pessoas que estavam 'encrentes' a olharem para mim, e vinha um qualquer, assim já tocado, e começava a contrariar, quando mal se não descuidava, andava a levar bofetadas. Sim senhora!
CPT10
INF Eu fui concertado, em novo, além para a aldeia dos 'Monturinhos'. Fui para além concertado, em novo. Tinha dezoito anos. Fui para lá para carreiro - andar estar com uma parelha. Sopro para avivar o lume INQ Ficou lá muito tempo? INF Hã? INQ Ficou lá... Nos 'Monturinhos' ficou lá muito tempo, ou não? INF Estive lá um ano. Depois, ao fim de um ano, o meu pai não queria que eu lá ficasse. Porque eu era também 'alvário'. INQ Rhum. INF Pois. E o meu pai dizia: "Está para além e depois a gente não sabe o que ele faz! Para além se torna aborrecido. Quem é que sabe agora o que ele para lá faz"?! O povo lá não me largava! Não senhora, não me largava! Sopro para avivar o lume O dia quando eu me vim embora... Que depois eu ganhava trigo... Eu ganhava trigo - chama-lhe a gente o ensacado -, ganhava trigo. E depois eu vim-me embora no dia 15 de Agosto - no dia 14 de Agosto. E depois daí (...) a uns dias fui lá buscar o resto do trigo. Mas fui logo... Levei uns burros que tinha o meu pai, e um carro e pensei em ir num domingo. Pensei em ir num domingo. Esse domingo, assim que deram razão de mim, vieram ter logo cá ao princípio do povo. Tiraram-me os burros e o carro, levaram-nos não sei para onde, e depois o resto do dia, fomos medir o trigo. Ele depois o resto do dia foi paródia. A rapaziada e as raparigas, tudo de roda de mim! Tudo de roda de mim! (...) Não me deixavam. Não senhora! Não me deixavam. Eu já tive um sonho com uma rapariga de lá e era rica. Mas era muito minha amiga. E bonitinha! E ela morreu, já há muito ano. Morreu nova. Morreu aí com dezasseis ou dezassete anos. Tive um sonho com ela. Uma noite estava deitado - está claro - e tive um sonho com ela. Que era um baile aqui no Carrapatelo. E eu cheguei ao pé do baile e não conhecia ninguém. Era a sonhar, não conhecia ninguém. Ele depois ouço uma pessoa a dizer assim: "Ah, isto é família dos Hermínios". E depois começaram a cantar. Eu, o cante, soube-o muito tempo mas hoje já não sei. Mas ainda me lembra um verso que eu ouvi no sonho. Um verso assim - ela era Inês, essa rapariguita, era Inês - "Inesita, vais à festa"? "Vou sim, ó meu lindo amor". "Inesita, vais à festa, pois então vai-te compor". Depois apareceu ela na roda. Já tinha morrido há mais de uma dúzia de anos, ou duas! Veja lá!
CPT11
INF Parte das vezes não me quero lembrar do meu tempo. Como eu me vejo hoje?!... Não senhora! Não me quero lembrar do meu tempo sequer ao menos. E ela era rica! Mas dançava comigo aquilo eu sei lá! Parece que ela que me tinha por família. Eu também dançava bem! Pois, eu sabia também divertir-me. E ela também. Um ano, lá no patrão onde eu estava, fomos ter (...) uma pândega, (...) lá para uma herdade que o meu patrão tinha arrendada, aonde foi ela (...) e foram mais outras, e foram as filhas do meu patrão. E depois chegou-se à horas de comer, (...) e elas quiseram ir mais eu - que estava um cabanão de mato ao lado do monte -, quiseram ir para aquele cabanão, não sei se sabem o que é? INQ1 Eu não. INF É uma alpendurada de mato. INQ2 Rhum. INF Pois. Quiseram ir para além, para estarem à vontade mais eu. Cantávamos e conversávamos e isto e aquilo. E depois por força que eu que me havia de embebedar. "Eu não me embebedo, que eu logo tenho que levar a parelha". Era ao pé da caseta de São Leonardo, além de Mourão para lá, é que era. INQ1 Ah! INF Tínhamos que vir pelos 'Monturinhos'. INQ1 Pois. INF (...) Digo: "Eu não bebo mais vinho porque eu depois não sou capaz de levar a parelha". "Mas há-de beber, e há-de beber, e há-de beber". "Não bebo, não bebo". "Há-de beber". "Não bebo. Não bebo mais". As minhas patroas foram dizer ao pai: "Pai, o Hermes não quer beber mais vinho. Sabe porquê? Porque não se quer embebedar por mor da parelha". "Diz lá que beba à vontade". Mas eu, mesmo assim, não me convenci. Não senhor! E tornaram lá a ir outra vez. "Digam lá que beba à vontade que não tenha lá receio". Tanta vez lá foram que ele foi lá a dizer-me.
CPT12
INQ Trabalhou mais anos fora? Ou trabalhou sempre aqui à volta? INF Não. (...) Depois trabalhei sempre aí nestes montes aqui de roda. INQ Rhum-rhum. INF Para povos nunca mais fui. Trabalhei aí nestes montes aqui de roda. Aí é que trabalhava. E depois (...) andei feito vendedor de galinhas e ovos. INQ Pois. INF Tive também uma vaca. Cheguei a ter duas. Depois morreu-me uma e eu aborreci-me daquilo, que aquilo era uma 'perca' grande. INQ Ah pois, naquela altura era. INF E morreram-me cabras. Enfim, eu tenho tido pouca sorte, que nunca fui capaz de endireitar as orelhas. Não senhor! Depois dei-me em fazer velho, (...) dei em ser doente, dei em não poder trabalhar. Isto nunca passei... Nunca fui nada! INQ Então não foi?! INF Não senhora! Nunca fui nada. INQ Rhum. INF (...) E aqui no povo eu não tinha aqui ninguém porque eu, a minha mãe era de Reguengos, o meu pai nasceu além num monte, além numa herdade, e esse monte já caiu. E de maneiras que vim para aqui, não tinha ninguém, toda a gente era mais do que eu. A minha conversa não valia de nada. A conversa deles é que valia, mais delas. (...) A minha conversa não valia de nada. Não senhora! Nunca tive aqui importância! E eu, muitas das vezes, calava-me. Mas em sendo preciso, eles não eram capazes de se apresentar em parte nenhuma. Não senhora! Nunca foram capazes de se apresentar em parte nenhuma a fazerem mais figura do que eu.
CPT13
INF Sou um pobre e não tenho letras para isso, não tenho condições, claro. Eu sou um infeliz. Sou doente, sou um infeliz. Pois. Vamos indo. Eu já não devo viver outro ano. INQ Isso é que é falar. Porque não? INF Porque eu sou muito doente. Assim é que aí andava o meu irmão. Andava, andava, andava... E esse trabalhava, mas não se queria fazer ruim, não queria (...) mostrar as doenças que tinha. Queria ainda ser como quando era novo. Quando mal se não descuidou, foi-se embora. INQ Pois. INF Agora eu não sou desses. Eu sei que não presto. Não presto, não me vou comparar com quem é bom. Pois. Sim senhora! É assim mesmo. (...) Eu não posso trabalhar, não trabalho. INQ É, é, faz muito bem. INF Estou ganhando cento e vinte escudos - um conto e duzentos - da Casa do Povo. INQ Um conto e duzentos... INF E vou-me assim temperando. E pronto. Vou indo, conforme posso. Tanto se me dá a mim que me 'deiam' mais valor, bem como 'deiam' menos. Eu não quero saber disso. Eu sou o que sou e não sou mais nada senão o que sou. Mais nada. E pronto. INQ Pois. INF Com a diferença que há aí muita gente... Querem por força ser mais do que eu! Ora serão, então. INQ Deixe-os ser. INF Pois.
CPT14
INF Eu já vi o arco - chama-lhe a gente o arco-da-velha, que é o do sol -, eu já vi o arco, (...) de noite, exactamente como o arco-da-velha, de dia. Já o vi eu. INQ1 E chama também arco-da-velha? INF Pois. Eu é que o vi foi de noite. Eu (...) ia para uma aldeia, que eu estava numa horta e ia vender hortaliças além ao Campinho. E, por acaso, à minha frente, a lua estava já deste lado, estava deste lado e o arco apareceu ali daquele, exactamente como aparece o arco de dia com o sol. Porque o arco está sempre à frente do sol. Já tenho tido teimas com muita gente. Como algumas pessoas daqui dizerem-me que vêem de tarde o arco-da-velha dalém. Não pode ser! E que o vêem daqui. Não pode ser! Pode aqui deste lado aparecer é uma ponta do arco, não é verdade? INQ1 Pois. INF Mas o arco está sempre à frente do sol. Nunca está do mesmo lado. Ainda nunca o vi do mesmo lado. Isso são coisas (...) - ninguém me ensina -, são coisas que eu reparo. INQ1 Pois. INF E calculo se são certas. Podem não ser, posso eu estar a falar errado, isso agora... Mas (...) ainda nunca vi o arco-da-velha do lado 'daonde' está o sol. Vejo-o à frente do sol. INQ1 Pois. INF Pois. Com o que não sei. INQ2 É, é.
CPT15
INF Não vê que essas coisas não é todo o ano que aparecem. INQ1 Pois. INF Porque (...) há aí temporadas que as estrelas vêm mais atrasadas do que outras. Pois. E há aí temporadas que não aparecem sempre (...) as mesmas estrelas. INQ2 Pois. INF Eu já me lembra de cair uma estrela. Tinha eu vinte anos. Era a estrela-do-pôr-do-ar-do-dia. Ao pôr do ar do dia, punha-se aquela estrela todas as noites, todas as noites, todas as noites. E daí para cá nunca mais a vi. Eu andava à ceifa e depois ele soou aquela rugida, aquela coisa, parecia uma mota, mas eu não a vi. Nunca a vi. Depois, foi-se a ver, disseram depois que foi a estrela-do-ar-do-dia que caiu aí para a Espanha. Para aí para a Espanha é que ela caiu. Nunca mais apareceu.
CPT16
INQ E essas estrelas davam alguma indicação aos pastores ou não? Os pastores tomavam indicação... INF Davam. Os pastores estudavam aquilo. Sabiam até, quase todos, as horas que eram de noite. Tanto que eles, elas chegando a um certo ponto, (...) ou arrecadavam o gado, ou o soltavam, sabiam isso tudo, os pastores. Sim senhora! Eu já estive no campo muito tempo e tinha que abalar de noite e regulava-me pelas estrelas. Porque eu não tinha relógio, regulava-me pelas estrelas. Havia umas estrelas que nasciam (...) numa certa hora (...) que eu via (...) que era tempo de eu me levantar para percorrer aquele terreno, levantava-me e ia seguindo. Pois.
CPT17
INF Essas três seguidas estão à frente do barco. INQ Estão à frente... Para ali? Ou para além? Em frente do barco... INF Elas vêm, correm para aqui (...) e vão à frente do barco. INQ Pois. Vão à frente do barco. INF Vai o barco que são quatro estrelas (...) em feitio de barco: INQ Rhum-rhum. INF estão duas ao meio e está uma assim em cada ponta, fazendo o bico do barco. E essas três estrelas vão à frente mesmo do barco. INQ Não há nenhumas que chamavam aqui as três-marias? INF Hã? INQ Não há nenhumas que chamavam aqui as três-marias? INF Eu (...) não conheci esse nome. INQ Olhe, e, e também quando as noites são muito claras, a gente vê aqui assim uma mancha branca, aqui n-, no astro?... INF É a estrada-dos-almocreves. INQ Rhum-rhum. INF (...) Havia uma vez um tipo, era casado, e queria bater na mulher e (...) não sabia como é que lhe havia de bater. E uma vez carregou uma carga de lenha num burro, e começou a entrar de arrecuas, com o burro carregado de lenha, para casa. E ela fazia-lhe todas as vontades: "Espera lá marido! Espera lá que eu puxo pelo rabo". Começou a puxar pelo rabo ao burro, ainda não teve pé, dessa vez, para lhe bater. E uma vez deitaram-se na rua - ele já com aquelas coisas na cabeça para lhe bater, para arranjar um pé, para lhe bater, na mulher - (...) e depois apareceu assim (...) aquela coisa mais clara assim que atravessava o astro e diz ele para ela: "Eh mulher, então (...) aquilo além assim mais claro, (...) aquilo é o quê"? "É a estrada-dos-almocreves". "Ó sua mandriona! Então e os almocreves passam aqui por cima da gente"?! Foi então quando lhe bateu.
CPT18
INF É 'socha'. 'Socha' mas, ouça, mas essa palavra não se escreve... INQ1 Da mesma maneira? INF Eu já tive (...) , uma vez, (...) uma teima com um tipo, que ele chamava-lhe 'socha'. E eu disse-lhe - (...) e é pessoa com mais categoria do que eu, pois - e eu disse-lhe que era uma choça. (...) E ele não acreditava! Um homem com estudos e não acreditava. E tinha o dicionário em casa, chegou lá a casa - eu, nesse tempo, andava vendendo leite -, e chegou lá a casa dele, puxou do dicionário e encontrou o nome de choça. No outro dia estava todo admirado comigo. Porque (...) eu estava a dizer a palavra como era e ele cuidava que eu que estava a falar errado. INQ1 Pois. INF E (...) eu sabia de certo porque eu quando andei à escola, eu tinha um livro que era uma mulher (...) que andava pedindo, não tinha casa. E tinha um filho pequenino. E andava mais o filho à pida. (...) E o filho disse-lhe assim: "Ó mãe, que tristeza não ter uma choça. Não falo em riqueza mas ter casa nossa". É por isso que eu sabia. Porque o garoto... Sim, aquilo são coisas escritas por quem tem estudos, pois. "Ó mãe, que tristeza não ter uma choça. Não falo em riqueza, mas ter casa nossa". É por isso que eu sei que é choça. INQ1 Pois. INQ2 Rhum-rhum. INF Pois. E eu nunca mais me esqueceu. E era garotinho pequeno! INQ2 Rhum-rhum. INF Pois. INQ2 E, às vezes, essa pedra não abria assim um, uma abertura? INF Pois, às vezes, há aí pedras que abrem. Até mesmo com qualquer perigo que venha lá do ar, com uma trovoada, esses perigos abrem (...) muita pedra. INQ2 Rhum-rhum. INF Conforme derrubam árvores. INQ2 Pronto. Como é que diz quando, quando a pedra, quando a pedra abriu? O que é que foi? INQ3 Hoje estou com pouca sorte! INQ4 Saltou-lhe ali uma coisa da... INF De maneiras que é assim. INQ2 Quando a pedra abre e fica assim meia aberta, diz assim: "Olha, aquela pedra tem uma"?... INF Tem uma racha. INQ3 ... INQ2 Qual? Ah, e como é que chama assim uma pedra que é muito direita? Assim grande, muito direita que está a tocar no chão? INF Uma pedra que é muito direita é plana. INQ2 Pois. Não dão um nome àquela pedra? INF Pois, (...) é uma pedra direita. Pois, é o que se lhe chama é uma pedra que é direita. INQ1 Não lhe chama uma lage? Esta, estas aqui do chão? INF Ah, mas isso é outro caso. (...) Isso é outra qualidade. INQ1 Pois. INF A lage é outra qualidade. Pois. INQ2 Como é que é? INF (...) A lage não é pedra. A lage não é pedra. (...) Essa lage, essa pedra só existe nas terras bravas, nessas terras bravas. Em terras destas não existe. INQ2 Rhum-rhum. INF Só se a trazem para cá. Pois. Além tenho eu uma, uma pequenina, além onde está aquele cântaro. INQ1 Pois. INQ2 Pois, pois. INF Pois. Mas isso não é criada aqui, não é cá. INQ2 Rhum-rhum. INF Isso não é de cá. INQ2 Está bem. Olhe, e com que, com que material é que ali no Corval eles fazem aquela louça? INQ1 Já está. INQ2 Já está? INF Hum? INQ2 Deixe, deixe. Portanto, com que, com que coisas é que se faz aquela louça?... INF Com uma roda. INQ2 Mas é f-, é f-, que material é que se põe na roda para se fazer a louça? INF Barro.
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INF Tantas pessoas que há com estudos (...) e não são capaz de dizer o que eu digo. INQ1 Pois. INF Mas é o meu sentido que puxa. Pois. Parte das vezes não preciso estudar, vêem-me as coisas ao sentido, e começo a... Ou parte das vezes (...) ou escrevo (...) para fixar para mor de não me esquecer, ou fico com as coisas fixadas cá no sentido. Agora isto, bem como isto, é uma conversa que a gente ouve aí a cada passo. INQ1 Pois, pois. INF Qualquer pessoa diz isso aí. INQ1 Rhum-rhum. Olhe, o tio Hermes disse que quando ia assim por essas terras que cada uma tinha a sua maneira diferente de falar... INF Sim senhor. INQ1 Portanto, em Reguengos é diferente daqui? INF É diferente. INQ1 Portanto, o que é que... O que é que, o que é que o tio Hermes vê lá que seja diferente de cá? Portanto, o que é que?... INF Sim senhor. INQ1 Como é que sabe que uma pessoa é de Reguengos? INF E hoje (...) já se não diferença tanto porque, hoje, o povo de Reguengos está já mais educado que o que estava antigamente. INQ1 Rhum. INF O povo de Reguengos era o povo mais selvagem que havia. E hoje, mesmo assim, hoje está mais educado. Dantes, a gente ia lá... (...) Eu ia lá, estava lá meses e meses - que eu tinha lá (...) as minhas famílias -, ia para lá, estava lá meses e toda a gente me conhecia. Mas o Reguengos teve tempo que uma pessoa que lá ia, de fora, pouca vez de lá abalava (...) sem o espinhaço sofrer, ou a cara. Pois. E de maneiras que, vai-se a ver, era estúpido. O Reguengos era estúpido. Mas hoje mesmo assim já escapa. (...) Já é uma gente que se pode lidar qualquer coisa. Sim senhora. INQ2 Pois. INQ1 Mas assim na fala, que é que, que é que eles tinham de diferente, ou?... Por exemplo, aqui à volta, qual é a terra mais, que se fala assim mais diferente do que C-, do que o Carrapatelo? INF Quase todas fazem diferença. O Carrapatelo é um povo com pouca educação. Eu sou um homem que não tenho educação nenhuma. A maior parte das palavras não as sei dizer. (...) E nem tenho essa tabela. E chega-se ali a São Pedro, há aí pessoas já educadas, que até têm vindo aqui à minha casa, já (...) para eu lhe explicar certas coisas. Pessoas!... Já aqui chegou um com o sétimo - era para fazer o sétimo ano - e veio aqui à de mim para o eu encaminhar. Porque ele tinha feito já seis exames, tinha sempre ficado bem. E estava receoso com o sétimo ano, e veio aqui (...) falar comigo (...) para eu o encaminhar. (...) Quando o moço me disse: "Ó tio Hermes, eu venho cá porque eu vou a fazer o sétimo ano e, vai-se a ver, estou receoso. Ainda não fiquei mal vez nenhuma do exame e agora estou receoso com o sétimo ano. E não gostava de ficar mal". E eu o que é que faço? Disse-lhe assim: "O que é que você quer que eu lhe diga do sétimo ano?! Eu tenho a segunda classe mal aprendida". "Mas o senhor sabe"! "Mas sei o quê"?! "Sabe, sim senhor". Digo: "Ora esta"! Eu fiquei sem pinga de sangue, sem saber o que havia de dizer. "Bom, você diz que eu que sei. Diga-me lá o que é (...) que eu sei". "Mas eu não sou capaz de lhe dizer". Começo a experimentá-lo, começo-lhe a dizer: "Então é isto, é isto"? "Não senhor". "É aquilo"? "Não senhor". "É doutro"? "Não senhor". "É desta maneira"? "Não senhor". "É da outra"? "Não senhor". Perguntei-lhe aí umas quinze ou dezasseis vezes, até (...) que lhe dei uma palavra (...) que eu até já me não lembra como ela foi. Dei-lhe uma palavra que ele fez-me assim: "É por aí que eu quero ir"! "Bom, se é por aí que você quer ir, então vamos então a falar". Dou-lhe em dizer coisas e ele escrevendo. Eu dizendo e ele escrevendo. Eu dizendo e ele escrevendo. Ele trazia um livro, foram só dezoito páginas que enchemos. (...) E passou-o depois, para ficar mais limpo, passou-o para outro livro. E levou aquele livro lá para a escola - que ele andava em Évora à escola. Levou aquele livro lá para a escola. Entregou-o lá ao professor dele. O homem começou a ler aquilo e levou para a casa dele. Já lho tem pedido, diz-lhe que não, que não lho dá. Vê, um homem analfabeto, faz de conta! E o professor diz que não lho dá, e que não lho dá, e que não lho dá. Com que ele tornou a fazer outro porque tinha cá a cópia. Tornou a fazer outro. (...) Já aqui veio para lhe eu (...) dizer coisas e ele escrever para a FAOJ de Évora. A FAOJ de Évora. Tem lá muitas coisas minhas! INQ1 Rhum-rhum. INF Sim senhor. Se for à FAOJ de Évora perguntar (...) por as minhas coisas, talvez lá as encontre.
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INF Também (...) foram dois homens e uma mulher, até uma rapariga moça... Ou foram dois homens e uma mulher ou foram duas mulheres e um homem que aqui vieram. Vieram aqui à minha casa. Vieram-me gravar. (...) Esta figura ruim que aqui está está escrito por metade do mundo. Ele até para Lourenço Marques foram coisas minhas já. Pois. Sim senhor. Veja lá bem. INQ1 E está a dizer que não sabe nada?! INF Hã? INQ1 E está a dizer para aí que não sabe nada. INF Ora, mas eu hoje já vou sabendo menos. Hoje então o sentido (...) já dá em variar. Naquele tempo, eu não me escapava nada! (...) Tudo o que eu tinha cá no sentido, tudo dizia. Pois. INQ1 Rhum-rhum. INF Pois. Com a diferença que isto eu estou já velho, isto até não sei. Eu já estou velho, isto não sei o que há-de ser no fim. No fim ele é ter de morrer e ir para baixo dos torrões. INQ1 Isso tem... Tudo tem que ser. INF E (...) nunca mais cá sôo e nunca mais falarão no meu nome. Digo eu. Ou o meu nome pode até nunca mais se esquecer. INQ2 Claro. INF Isso agora não sei! Pois. Não sei.
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INQ1 Ah, mas tem muito valor as coisas que o tio Hermes faz. Eu acho que tem. INF Eu não lhe sei dar o valor. Não sei. (...) Tanta vez (...) falo e depois está um ou outro a dizerem assim: "Isso, ele são parvoeiras"! Tantas vezes que me dizem isso! Daqueles que não são capaz de abrir a boca sequer ao de menos. INQ1 Pois. São sempre esses que dizem as coisas, porque as pessoas que sabem o valor que as coisas que o tio Hermes faz, não, não dizem isso, não é? INF Pois. Pois. Pois. INQ1 Portanto... INF Conforme há aí pessoas que me dão valor! Pois. Há aí mesmo pessoas conhecidas que dão valor ao que eu digo. Mas é o menos. Cá no sítio é o menos. Na sua terra ninguém é perfeito. INQ1 Pois. Sempre foi assim. INF Pois. É claro. INQ1 Portanto, não... INF (...) E eu agora isto já me custa muito. INQ1 Rhum-rhum. INF E dantes nem que ele fossem três dias com três noites, tudo pegado, (...) não me fazia diferença. INQ1 Rhum-rhum. INF Não me fazia diferença. Não senhora. Não me fazia diferença. Eu cantava noites inteiras e dias (...) e sempre para a frente. Quanto mais cantava, mais a fala aclarava. Eu se estava aí três ou quatro dias sem cantar, quando começava a cantar, a fala estava assim tosca qualquer coisinha. Mas depois, quando era ao fim de meia hora de cantar, já não havia (...) quem tivesse uma fala que igualasse a minha. Não senhora. Eu passava para diante a tudo. INQ1 Rhum-rhum. INF Eu tenho mágoa até de estar assim. Sim senhora. Eu hoje vivo magoado, saber o que eu era e o que eu estou! Eu vivo magoado! Muitas das vezes, peço a morte. O meu irmão morreu há questão de um mês ou dois, eu é que devia ter ido. Porque eu sou um homem sozinho e ele tinha mulher e tinha filhas que o acareavam. E eu sou um homem sozinho. Tenho aquela irmã que olha qualquer coisa por mim. Mais nada. Ela é boa pessoa, pois, é boa pessoa. Isso então tem ela. É boa pessoa. Aquilo também chegou ali e parou. Mas nunca teve esta habilidade (...) que eu tenho tido. INQ1 Pois, pois. INF Nem o meu irmão. O meu irmão cantava bem, cantava bem. Mas lá para fazer coisas, para fazer versos, ou isto, não. (...) Não tinha condições para isso. INQ2 Pois, pois. INF Pois. Isto foi uma coisa que nasceu comigo, não sei de que maneira. Se eu sou nascido de duas gerações quais delas piores para cantarem e fazer versos... Do lado da minha mãe tinha as minhas tias: não havia quem as vencesse; e do lado do meu pai tinha uns primos - primos direitos dele -, que também não havia quem os vencesse. INQ1 Pois. INF Pois. Agora já, a bem dizer, nenhum sabe nada. INQ1 Pois, às vezes vai da... INF (...) Os que eram assim já morreram. O meu pai também cantava mas não era especialidade. INQ1 Rhum-rhum. INF Mas também cantava. INQ1 Pois. INF Tinha uma fala muito forte! (...) Ele entoava aí, entoava léguas aí nesses campos. Às vezes andava com uma parelha a lavrar o campo, começava a cantar, entoava léguas. INQ1 Rhum-rhum. INF Mas não era lá cante muito bem feito, muito bem feito. E nunca teve (...) assim a ideia que eu tenho, porque eu, eu mesmo fazia os cantes. Pois. INQ1 Pois, pois. A música e tudo. INF Eu fazia os cântigos. Vinham um grupo de pessoas - tanta vez! -, vinham grupos de pessoas aqui à minha casa - ainda a minha mãe era viva -, vinham aqui, pediam-me um cante e uns versos e eu fazia-os, para eles cantarem, para eles depois irem cantar por essas aldeias. INQ1 Rhum-rhum. INF Pois. Sim senhora.
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INQ1 Nunca ouviu falar na alfazema? INF Tenho 'ouvisto' falar mas não conheço. INQ1 Rhum-rhum. Olhe, e uma outra que também tem uma flor amarela e que não cheira muito bem? E que, às vezes, portanto, quando, nas feridas dos animais, aquilo punha-se na ferida que era para ajudar a curar. INF Para ajudar a curar? INQ1 Para as feridas dos animais? E também... INF Então não é a erva-das-cinco-linhas? INQ1 Rhum! Erva-das-cinco-linhas utilizava-se para as feridas dos animais? INF Sim senhor. E para as feridas da gente também. INQ1 Rhum. E como é, como é que é? Como é que é a erva-das-cinco-linhas? INF Tem uma folha larga (...) e tem as linhas. Em se pondo... Se alguma ferida está mal assombrada, punha-se uma folha daquelas ali, e ligava-se. INQ1 Cento e dezassete. INF Depois a ferida quando era daí por uma hora ou duas, já estava branca. E havia outra que a gente lhe chamava a boca-do-lobo. INQ1 Rhum! Como é que era essa então? INF Era também uma folha larga. E chamava-se-lhe a boca-do-lobo porque criava uma flor, chamavam-lhe a boca-do-lobo àquela flor. INQ1 Rhum-rhum. E também tinha assim a folha larga? INF Tinha a folha larga. Ainda era melhor que a erva-das-cinco-linhas. INQ1 Pois. E a, e a, o tio Hermes nunca ouviu falar na, na arrúdia? Ou na arruda? INF A arrúdia? INQ1 Também se usava para alguma coisa? INF A arrúdia, eu conhecia, a arrúdia. Até a gente, às vezes, quando as conversas não calhavam muito, dizíamos assim: INQ1 Rhum. INF "Hum! Tu conheces a arrúdia pelo cheiro"! Risos (...) INQ1 Pois. Então a arrúdia cheira mal, é? INF Pois. Pois. INQ1 Rhum-rhum. E há uma outra, tio Hermes, que dá umas baguinhas... Portanto, cresce assim numa espécie duma moita e dá umas baguinhas pretas? E essa ma-, a madeira dele até quando se queima cheira bem... INF Umas baguinhas pretas... INQ2 É cento e trinta e oito? INQ1 É. Que até nalguns, nalguns lados, aqui não sei se punha ou não, que se punha no cortume ou então na aguardente para dar um gosto. Aqui não sei se se costuma fazer. INF Não, para aqui não. INQ1 Nunca ouviu falar no zimbro? INF Para aqui não. INQ1 Não. INF Com umas baguinhas pretas, não sei. INQ1 Rhum-rhum. Olhe, e uma outra que é, que é doce, que até se põe na aguardente com açúcar que é para c-, e aquilo cria um raminho lá dentro, o açúcar faz ali no, no ramo, faz assim umas coisas muito brancas. É uma bebida que, que se faz. INF Não conheço. INQ1 Nunca ouviu falar no funcho? Ou na erva-doce? INF Ah, é o funcho? INQ1 Rhum. INF Conheço bem. Oh, mesmo além onde estivemos (...) está ele além (...) uns que estão já secos (...) porque eu cortei-os (...) com uma enxada. INQ1 Havia? Pois. INF É o funcho. Conheço-o bem.
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INF Vomecês estejam à sua vontade aqui na minha casa, porque eu, (...) eu sou assim: eu gosto de ser bem tratado em toda a parte; e também gosto, quando vêm pessoas à de mim, de as tratar bem. INQ Pois, pois. INF Sim senhor. Eu sou uma pessoa que muita gente não me dá o valor que eu tenho. (...) Mas então? INQ Rhum. INF O que é que eu hei-de fazer?
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INQ1 Portanto, uma árvore tem uma... INF Duas raízes? Não, mas é que ele há árvores que têm dúzias de raízes. INQ1 Pois. INF Pois. Não têm só uma raiz. INQ1 Rhum-rhum. INF Porque se tivessem só uma raiz vinha um pé de vento que as apanhasse ao jeito daquela raiz, caía logo. INQ1 Caía logo tudo. INF Mas assim têm... É isto. INQ1 Pois, parecem dedos, não é? INF Pois. Pois. INQ2 Pronto, já está. INQ1 Olhe, e aquela parte de fora do, do tronco da árvore, como é que chama? INF É a rama. INQ1 Não, a parte de fora. Portanto, portanto, é, no tronco, tem aquela parte mais grossa e tem uma outra parte que até às vezes se arranca, portanto, que cai? INF (...) Então aquela parte - chama-se-lhe o pé - (...) e as outras coisas que abalam dali, a outra madeira que abala do pé, chamam-se-lhe as pernadas. INQ1 Rhum-rhum. E das pernadas sai mais algumas? INF (...) Das pernadas nascem outras para formarem a árvore.
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INQ1 Fazia-se alguma coisa com essa coisa do sabugueiro? INF Fazia-se uma gaita. Dali, fazia-se uma gaita. INQ1 Rhum-rhum. INF (...) Outras vezes, fazia a gente quando era gaiato uma espécie de espingarda (...) com uma vara. INQ1 Rhum-rhum. INF (...) E depois punha lá uma coisa à frente e aquilo estava metido num buraco. E a gente acalcava por baixo e a vara era enrolada e depois a vara fazia isto: "zuz"! INQ1 Rhum-rhum. INF Fazia saltar a bala. INQ1 Pois. A bala. INF Pois. INQ1 Está a ver? Olhe, e umas outras que nascem aí ao pé, ao pé do ribeiro? Que mais nasce? Há umas que aí nos ribeiros, aos lados assim, também são altas e que ficam assim? Aos lados dos, dos barrancos e dos ribeiros? INF Então é o choupo. INQ2 Já está. INQ1 Pois, é o choupo. INQ2 O cento e noventa e dois é que não está. INF E é (...) o mosqueiro. INQ1 O mosqueiro é alto ou é baixo? INF É alto. O mosqueiro cria uma coisa assim, uma cabecinha assim, e depois a gente abre aquilo, lá por dentro está cheio de moscas. INQ1 Rhum-rhum.
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INF Era também (...) especial, era pobre também. Tenho ali livros dele. INQ1 Do António Aleixo? INF Do António Aleixo. Tudo quanto ali está, eu acho bem feito. Do António Aleixo, pois. (...) E não estou a desapreciar aquilo que ele disse, aquilo que ele fez. Esse é um homem que com certeza que já morreu também (...) há uns pares de anos. INQ1 O António Aleixo já morreu há uns anos, já. INF Pois. Havia um tipo, que era o Leandro Nogueira... Vê, eu conheço. E olhe que é assim, eu já tenho reparado: os homens assim como eu, todos se vêem desgraçados e desprezados em velhinhos. Havia um Leandro Nogueira que era também (...) do melhor que havia, do mais especial que havia. Era um velhinho que andava por aí. Eu não o conheci. Mas a minha mãe - que Deus haja! - ainda o conheceu. Quem falava com ele, quem lhe perguntava coisas, ele sabia sempre responder. Sabe o que ele fazia quando era velhinho? INQ1 Não. INF Agulhas de meia, para fazer meia. E vendia. Diz que eram - até ouvia eu dizer à minha mãe - que eram as agulhas melhores que havia que era as agulhas que ele fazia. E andava aí por essas terras desprezado. Eu ainda tenho aqui a minha casa. Ainda tenho aqui a minha casa, aqui me acolho, (...) e ainda bem não, quando me calha, vou à da minha irmã. Mas quem sabe se eu estivesse sempre na casa da minha irmã, se eu muitas das vezes sofreria?! Não acredita? INQ2 Pois. INF "Porque o homem velho perde a posse, e urina-se e tosse, e pinga-lhe o nariz e ninguém acredita o que ele diz". INQ1 Pois. INF Não acredita? "Ah, você é já velho, você não sabe nada. (...) Eu é que sei, eu é que faço e aconteço". Pronto, o homem velho, o homem velho tem que se calar, pois. Tem que se calar, porque não tem valor. INQ1 Sabe que a gente, eu, ainda agora li uma do, que o tio Hermes tinha ali do, do homem velho. O que é que o homem velho tem no meio das pernas? INF Leram isso? Risos Então (...) eu tenho isso escrito? INQ1 Tem, sim senhor. Julgava que não tinha? INF Pois. Então mas como é que apanharam isso? INQ1 Foi naquelas que o tio Hermes tinha lá, naquelas folhas que nos emprestou. Risos INF Faz sentido . Tem um inválido. Tem um reformado e dois inválidos. INQ1 Dois inválidos. INF Pois. INQ1 Há muito tempo que escreveu isso, o tio Hermes? INF Há anos, ora! Então e a mulher, não está lá? INQ1 Está. INF Pois. INQ1 Como é que é? Uma ilha... INF É uma ilha (...) desprezada dos pretos e tomada pelos russos. INQ1 E dos russos? INF Risos (...) Mas como é que vossemecês?... Como é que eu mandei isso assim? Risos Eu tenho as coisas para ali juntas, e depois, olha...
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INQ1 O tio Hermes ainda escreve agora? Ou já, já há muito tempo que não faz nada? INF Escrevo mas (...) eu tremo muito, não gosto já de escrever. Ainda há poucos dias eu fiz umas quadras aí à rua. (...) Eu não lhas mostrei já? INQ1 Da rua? INQ2 Tenho impressão que sim. INF Pois. INQ1 Já. INF Pois. Houve um tipo que me pediu (...) ... INQ1 Tio Hermes, e aqui assim na, nessas terras que o tio Hermes correu, não havia mais homens nenhuns que fizessem poesia? Fizessem quadras e décimas? INF Havia. Sim senhora, havia. E há. Agora, eu, está maldito a mim. Agora que me igualasse (...) não havia. INQ1 Pois. Mas portanto, esses que ainda... Há aqui a, ao pé, ainda há algum ou já?... INF Está aí um que diz que sabe mais do que eu. INQ1 Ah, aqui na... INF Vive cá mesmo no povo. INQ1 No Carrapatelo. Portanto, mas e esses que, que o tio Hermes conhecia, escreviam sobre o quê? Sobre as mesmas coisas que o tio Hermes escrevia ou era só aquele desafio? INF Não (...) . Eles escreviam lá as coisas deles. Eles faziam lá as coisas deles e eu fazia ele cá as minhas. Pois. INQ1 Rhum-rhum. INF Pois então cada um tem lá o seu sentido. (...) Eu não posso pensar o que o senhor pensa. Só aqui agora neste conjunto, não é verdade? Mas em se separandomos, o senhor pensa numa coisa e eu penso noutra. INQ1 Pois. INF Pois, é por isso que eu... Mas havia muito quem, às vezes, se quisesse comparar comigo, mas não. Não sei, olha, eu não sei. Parte das vezes tinham que se calar porque chegavam a pontos que já não tinham resposta para me voltar. (...) Eu tive tempo que tinha respostas para tudo. Era para tudo, para tudo quanto calhava. INQ1 Rhum-rhum. INF Pois, sim senhora. Agora hoje, já não. Estou já muito velho. E sou doente! Não tenho vontade e o sentido também tem abalado. Mas está aí um que me quer passar para diante. Ele não sabe nada. Ainda ontem à noite me disseram, houve uma pessoa que me disse aí: "'Há-des' dizer a esses homens para virem cá à casa dele, para vermos o que ele faz". Digo: "Eu não. Não digo cá nada. Não quero saber". INQ1 Pois. INF Isto calhou agora em conversa. INQ1 Pois. INF Pois. Eu não. Não digo cá nada. Não. Para os homens depois dizerem: "Foi enganar a gente"! INQ1 Rhum-rhum. Chega o outro pau lá, mais para cima. INF Pois se ele... INQ2 Este? INQ1 Endireita em cima. INF Ele é um tipo que (...) diz uns versos, claro, (...) da ideia dele. INQ1 Quando calha. INF Mas, depois, dali para diante já não é capaz de seguir. Pois. Não é como eu era. Porque eu hoje já muitas coisas me têm abalado, mas... O senhor sabe que veio mais a Manuela, não é verdade? INQ1 Rhum-rhum. INF (...) E que tempo estiveram de posse de mim e eu dizendo coisas? INQ1 Foi uma manhã a só dizer... INF E cantando? Hã? INQ1 Foi. Dois dias que a gente... INF Foram dois dias! Nunca chegaram à ponta. INQ1 Pois. INF Agora hoje já não sou capaz de fazer isso. Foram dois dias: um dia das dez da manhã até talvez quase às dez da noite. INQ1 Foi. Foi até muito tarde. INF E foi outro dia das dez da manhã até às quatro da tarde - que eu sei bem isso. INQ1 Pois. INF Pois. Depois determinaram a abalar. Mas nunca chegaram a ouvir tudo quanto eu sabia. Agora hoje (...) já estou muito esquecido de muitas coisas. Já não sou o que era. Oh, se eu estivesse como nesse tempo, bem eu estava hoje! (...) Isto há o quê? Uns quatro anos, não é? INQ1 Foi em 75. Há quatro anos. INF Pois. Pois. Há uns quatro anos. Eu (...) não tinha torna. Não senhora! Não tinha torna.
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INF Eu voltava-me para todos os lados, para todos os lados, para todos os lados. Agora hoje é que já não. Não senhor! Os anos são já muitos e o sentido 'vareia'. O sentido deixa abalar muita coisa. INQ Não, mas ainda foi bom foi o tio Hermes se lembrar de escrever as coisas. INF Pois, então não vê que eu se não as escrevesse não as decorava. INQ Pois. INF Pois. Eu até mesmo (...) para ensinar coisas, tinha que as escrever. Escrevia-as e depois estudava-as, e daí decorava. Pois. Eu, naquele tempo, em lendo as coisas duas ou três vezes, ficava logo com elas no sentido. INQ Rhum-rhum. INF (...) Mas agora já não. Agora nem eu mesmo me ponho a maçar o meu sentido. (...) Hoje não decoro já nada. Não senhora! E até mesmo nem gosto já de fazer nada, porque estou a maçar o sentido, porque eu sou já muito velho. E isto (...) também se gasta. Pois. Isto também se gasta. Parece mentira mas não é! INQ Isso acontece com toda a gente. INF Eu nunca pensei de... Nunca pensei?! Hum, pensava pois, mas (...) antes de chegar ao que estou, não me lembrava que chegasse a isto. Pois. Mas então, o que hei-de fazer? (...) INQ Pois, pois. INF Tenho que me calar. E daqui nada não digo nada. Que venham cá, que não venham, não sei nada. (...) Sou um infeliz. INQ Não, o tio Hermes ainda sabe muita coisa. INF Ah, mas não é já nada ao pé (...) do que eu sabia. Não é nada já. Não senhora! Eu até mesmo passava aí por um rancho de família, começavam-me a gritar, fazia-lhe logo uns poucos de versos. Às vezes até às raparigas moças, dizia-lhe coisas... Mas o quê?! Dizia-lhe tudo quanto eu queria mas (...) não se zangavam comigo. Não senhor. Não se zangavam comigo. Eu dizia tudo quanto me vinha à bola e elas ficavam a rir. (...) Há coisas que (...) talvez fiquem na história, coisas que eu disse noutro tempo. INQ Rhum-rhum. INF (...) Há aí coisas nessas aldeias que ainda não esqueceram e eu há mais de uma dúzia de anos que as disse, (...) ou duas dúzias, e ainda não esqueceram, àquelas famílias. E depois daquelas famílias passam para outras, dizem umas às outras (...) e eu, parte das vezes, não me lembro delas (...) e elas lembram-se. Não estou esquecido de muitas coisas porque mas tornam a dizer. INQ Pois. Estou a perceber. INF Pois. Sim senhora. Oh, oh.
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INF Uma vez fui buscar um cântaro de água. Já há anos! Iam os rapazes para Moçambique. Estavam os rapazes em Moçambique e eu fui buscar um cântaro de água, e eles andavam à azeitona - foi neste tempo -, andavam à azeitona ali ao pé da estrada. Andava ali uma rapariga moça, do baldio. Diz-me ela aqui assim: "Ó tio Hermes faça-me lá um verso"! "Ah, então que verso hei-de eu fazer"? "Olhe, tenho o rapaz em Moçambique". Era o namorado. "Tenho o rapaz em Moçambique". Digo-lhe eu aqui assim: "Toda a moça que namora um rapaz em Moçambique, vamos ver se ainda chora o dia que ele a pique". Ela estava de pé a olhar para mim, (...) agachou-se logo a apanhar azeitona e depois levantou-se a rir. Risos Pois. Coisas que nunca esquecem! E atrás dessa (...) tenho centos delas!
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INF Perdizes, também se usava noutro tempo. INQ Pois. INF Punham-se perdigões assim dentro de gaiolas para cantarem (...) . No tempo que não havia licenças de caça - veja lá que eu lembra-me disso -, havia aqui uns homens que tinham sempre perdigões. INQ Rhum-rhum. INF Até escolhiam, criavam aqueles perdigões e alguns eram bons para cantar. E eles punham-se (...) num aguardo qualquer, e os perdigões estavam já naquele costume: punham a gaiola em cima duma pedra ou duma coisa qualquer, começavam a cantar, Tosse e as perdizes e os perdigões iam ali ter, a cantarem também. (...) E eles atiravam-lhe. Atiravam, matavam um ou dois de cada vez. INQ Rhum-rhum. INF Quando era daí a nada, o perdigão começava a cantar outra vez, vinham outra vez ali ter.
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INQ Ou que dizem cá-vai, cá-vai, cá-vai, cá-vai? INF Ah, isso é o 'leitibó'. INQ Diga? INF É o 'leitibó'. INQ Rhum-rhum. INF Isso dizia ele quando Deus Nosso Senhor ia a fugir dos judeus. E ele iam judeus (...) atrás de Deus Nosso Senhor e ele dizia - ele tinha acabado de passar -, e ele dizia: "Cá vai, cá vai, cá vai". Que ficou até amaldiçoado, que (...) faz uma cova no chão e não lhe põe pasto. Ficou amaldiçoado, porque não faz ninho. INQ Rhum-rhum. INF Cria os filhos mesmo na terra. INQ Pois. INF Está amaldiçoado.
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INQ Nunca ouviu falar na galinhola? INF Já as tenho visto mas tenho-as visto ao pé das ribeiras. INQ Rhum-rhum. INF E elas, quando dão razão da gente, pulam logo para dentro de água e metem-se por baixo de água. INQ Ai é? INF Pois. INQ Rhum-rhum. INF E de maneiras que não sei bem como elas são. INQ Pois. Olhe, o tio, o tio Hermes já ouviu falar do, sobre as rolas? Contava-se alguma coisa por que é que a rola fazia o ninho com três pauzinhos? Não se conta nada a respeito disso? INF Eu já ouvi isso mas não me lembra. Não sei se foi castigo que Deus Nosso Senhor lhe deu também se o que foi. INQ Rhum. INF Faz o ninho com três pauzinhos. E como é que eles (...) têm além os ovos e (...) chegam a ter os filhos e não caem? INQ Pois. Pois, pois. INF Em cima duma árvore. Pois.
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INF Pois, percevejo. Ainda tive aqui na minha casa uma vez, um ano, que tivemos que atirar com as camas para a rua. Para desinçarmos aquilo foi com o DDT. (...) Que depois apareceu o DDT. INQ1 Pois. INF Senão nunca mais nos víamos livres daquilo. Até cadeiras e tudo estava inçado já. INQ2 Pois. Olhe, e um outro que costuma aparecer na batata? INF Esse? INQ2 Um bicho? INF Isso é um escaravelho qualquer. INQ2 Rhum-rhum. Olhe e um, e um que é preto e tem assim uma risca vermelha, e tem assim umas garras mais à frente? INF Não sei. INQ2 É assim comprido, e tem umas riscas vermelhas em cima? E até se diz se os bois comerem aqueles bichos que morrem. INF Ele há tanta qualidade de bicho que (...) há um bicho que até lhe chamam a... O quê? O que é que lhe chamam? Que até dizem que em um bicho daqueles picando na gente, que a gente morre. Dizem que (...) a criatura que é picada daquele bicho tem que ser vestida de encarnado e tem que as pessoas andarem com eles vinte e quatro horas para não morrerem. É o quê? A taranta. INQ2 Rhum. INF É um bicho que tem assim um rabo comprido. Em picando numa criatura... É a taranta. INQ2 Anda aí na terra, não é? INF Anda voando por aí. INQ2 Voando. INF Sim senhora. INQ2 Rhum-rhum. INF Mas não é bicho que persiga (...) as pessoas. INQ2 As pessoas. INF É se o trilham ou qualquer coisa... INQ2 Pois. INF (...) Eu já tenho andado no meio de centos deles. (...) Passam por a gente, umas por um lado, outras por outro, outras por outro. Como não se trilhe...
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INQ1 E conhece uma outra que é a formiga de asas? INF Conheço. Formiga de asas, isso é logo quando é nova. (...) Em saindo de lá dos buracos, saem e trazem asas, e depois caem-lhe. Começam a ser formigas como as outras. INQ1 Rhum-rhum. Olhe, e uns outros que aparecem aí no Verão, que têm as pernas de trás, mais... INQ2 Já está. INQ1 Mais compridas... Como é?... INQ2 Gafanhoto. INQ1 Gaf-, o gafanhoto? INQ2 Gafanhoto. INF Gafanhoto, pois. INQ1 E, e os outros mais p-, pretos que, que fazem um barulho? Que se ouve, até os miúdos costumavam apanhá-los para pô-los dentro dumas gaiolas pequeninas? INQ2 Gostam muito de alface. INQ1 Fazem cri-cri-cri-cri! INF Ah, é o grilo. INQ1 Conhece o ralo? INF Conheço. INQ1 Como é que é? É que esse não conheço. INF O ralo é do tamanho do grilo, com a diferença que é doutra cor. INQ1 Mas é, é parecido com o grilo? INF É parecido com o grilo. INQ1 E qual é a cor que ele tem? INF A cor, (...) não sei dizer o que é a cor. INQ1 É assim escuro? INF (...) Quase cinzento ou não sei o quê. INQ1 Rhum-rhum. E uma outra que até ha-, havia a história que era a formiga, juntava todo... INF A formiga, (...) dizem que a formiga que (...) é trabalhadeira. Todo o Verão (...) carrega semente para comer de Inverno. Até dizem que (...) a cigarra que uma vez foi-lhe pedir trigo emprestado e a formiga disse-lhe assim: "Então de Verão o que 'fizestes'"? "Cantar". "Pois agora dança". INQ1 ... INF E nunca lhe deu... Nunca lhe emprestou o trigo. INQ1 Rhum-rhum.
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INF São as aranhas talvez, não? INQ Rhum-rhum. E a, e a aranha, que é que faz então? Como é que chama aquela coisa? INF Faz uma teia. E o senhor não sabe para que é aquela teia? INQ Aquilo é para apanhar comida para ela. INF É para apanhar bichinhos naquela teia e ela vai logo a correr e apanha. INQ E come. INF E ele depois enleia-a na teia e já dali não abala. INQ Pois. INF E depois come-as lá (...) quando lhe parece. INQ Olhe... INF Eu tenho visto esse serviço - sabe? - feito pelas aranhas. INQ Pois. INF É giro. Ir uma mosca voando, vai ter com a teia, fica logo agarrada da teia que já dali não... INQ Sai. INF Ele depois vai a aranha e começa a puxar teias, ora, aperna-a de todas as maneiras.
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INF O homem estava encantado em mim. INQ1 Está a ver? INF Um doutor. Vê?! O que é que eu sou ao pé dum homem daqueles? Nada. INQ1 Sabe muita coisa que ele não sabe. Pronto. INF Ora, tudo quanto eu disse ele não o sabia. INQ1 Então está a ver?! Gabriela, queres ver onde é que puseste a cassete? INQ2 Não, não. INF (...) Veja lá o fio (...) se fica debaixo da coisa, dos pés da cadeira. INQ2 O fio está bom, está bom. INQ1 Passa lá. INF Então, mas aqui neste povo há aí uns que já têm (...) uns certos estudos. Há aí pessoas já com o sétimo ano, com o oitavo. E dizem que eles é que sabem falar. INQ1 Isso dizem eles. INF E que eu que não sei. Risos INQ2 Então o tio Hermes depois diz: "Olhe, mas quando vieram cá as senhoras lá de, da, que trabalham lá com as coisas das línguas, não quiseram saber deles e quiseram saber foi do tio Hermes". Diga-lhes isso. INF Risos Há aí imensos artistas, imensos artistas. (...) Olhe, eu tenho sido sempre muito apoquentado com estas coisas. Dantes era (...) com brincadeiras, cantes, versos, ensinar a dançar, ensinar a tocar, que eu também arranho qualquer coisa numa concertina. INQ2 Pois. INF (...) E de maneiras que tinha muitas fezes. Às vezes, (...) em chegando assim ao tempo do Carnaval, ensinar dois, três grupos de pessoas. E depois abalavam por essas aldeias cantando e dançando e davam-lhe dinheiro. E eles pagavam-me também a mim, pois. Também me pagavam. Com o que , hoje, já não vou servindo para nada. INQ1 Rhum? INF Olha, o vento, se calhar, está aí a tratá-las mal. INQ2 Não. INQ1 Rhum. INQ2 Olha, vai lá tu perguntando... INF A Manuela. Então nunca viram a Manuela? Ai, agora nunca lá foram. INQ2 Agora não. INF Em lá indo, têm que lhe dar lá muitas saudades minhas. INQ2 Sim senhor. INF Já a não chego a ver. INQ1 Ai, ela qualquer dia vem cá! INQ2 Outra vez que a gente passe por aqui com ela, vimos cá. INF Pois. (...) Eu fiquei gostando muito dela. É muito alegre. E dava grande valor (...) ao que lhe eu disse.
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INF Olhe, o umbigo, aquela minha irmã que viram ontem, não o tem. INQ1 Sim. INF Foi operada. INQ2 Pois. INF Tinha o umbigo partido em três partes. Depois (...) foi fazer a operação, cortaram-lhe aqui esta parte da pele e o umbigo. INQ2 Pois. INF Sim senhor. INQ1 Ó tio Hermes e uma pessoa que vai muito à casa de banho, diz-se que está com quê? Que anda sempre em quê? INF Está com calma. (...) Ou está com calma, ou quer-se lavar. INQ2 Não. INQ1 Ó tio Hermes... INQ2 A casa de banho não. Olhe, tio Hermes quando uma pessoa tem uma dor de barriga, diz que está com quê? INF Está com dor de barriga, então! INQ2 Aquilo que o tio Hermes teve quando era novo que, que o homem ainda por cima lhe foi dar o, a purga do óleo de fígado? INF Ah, pois. INQ2 O óleo de rícino. Como é que se chamava aquilo que o tio Hermes tinha? INF Ah, (...) isso (...) era uma soltura. INQ2 Olhe, e as pessoas vão... Quando estão com soltura, têm que ir muitas vezes... INF Muitas vezes. INQ2 Para fazer o quê? INF Fazer as necessidades. INQ2 Diz-se... INF Porque senão sujam-se até mesmo. INQ2 Pois. INF (...) Pode até sujar a roupa. INQ1 Olhe, tio Hermes, dois, dois são dois rins, um é só um?... INF Um. INQ2 Dois são dois rins, não é? INF Pois. INQ2 E um é só um? Um quê? INF É só um rim. INQ1 Olhe, as águas vão dos rins, e dos rins vão para? Para uma outra coisa. INF Dos rins... INQ1 Às vezes está cheio, temos que ir... INF Dos rins... INQ1 Pois, as águas passam para onde? INF Passam aqui pela goela. INQ1 Não, dentro do... INQ2 ... Ó tio Hermes, a gente tem que fazer as necessidades quando... Por exemplo, há bocadinho estávamos a falar da soltura... INF Pois. INQ2 É uma coisa. E outra coisa que a gente também tem necessidade, de vez em quando, de fazer, o que é? INF Chi-chi. INQ2 Pois. Como é que se chama o chi-chi? Chama-se o quê? INF Cá a gente é mijar.
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INQ1 É umas, portanto, que geralmente fica o, o rabo dos bebés, fica assim todo vermelho, tem que se pôr muito... INF Pode ser alteração de sangue. INQ1 Não, às vezes é mais por causa da, por causa do chi-chi e da urina, fica assim vermelho. INF Ah, mas isso (...) é porque (...) não são limpos a horas INQ2 Pois. INF (...) e a roupa fica urinada INQ1 Pois. INF e depois (...) faz inflamação na pele. INQ1 Não dão nome nenhum a isso? INF Pois... INQ2 Olhe, e umas manchas que há - agora não são só os miúdos que têm, nós às vezes também temos-, uma manchas, com o calor, aparecem assim umas manchas, faz muita comichão e a pele parece que começa assim a esfarelar? INF Essas manchas, não sei. INQ1 Nunca ouviu falar na, nas impingens? INF Ah! Oh, tantas que eu tenho tido! Olhe, não vê esta mão como é? INQ1 Rhum. INF Isto é uma impingem. Nasceu aqui, depois veio vindo, veio vindo, veio vindo, apanhou-me aqui a costa da mão toda, aqui assim, tudo, tudo, as costas da mão toda. Passou-me para a palma da mão. INQ2 Rhum. INF De Verão salta-me a pele aqui na palma da mão. Aqui acabou. Não vê as unhas? INQ1 Rhum-rhum. INQ2 Pois. INF Estão aleijadas, é tudo da impingem. Não vê estas? INQ2 Essas estão boas! INF Pois. E estas estão aleijadas. Nem mesmo crescem mais do que isto. Estão sempre caindo pedacinhos. INQ2 Rhum.
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INF Já há que tempos que eu ando a querer ir a Évora para ver o que tenho, e ainda lá não fui e nem sei onde os médicos moram. INQ1 Então porque é que não pe-, porque é que não pede pela Casa do Povo? INF Casa do Povo? Vai lá um médico que diz assim, para gente assim já como eu: "Isso você já (...) não merece a pena curar-se. Isso é para morrer". INQ1 Rhum. INF Pois. (...) Há talvez cinco ou seis meses que não vou à Casa do Povo. E tenho comprimidos (...) que eu tomo todos os dias (...) e compro-os à minha conta e não vou lá. INQ2 Olhe, tio Hermes, os comprimidos são quê? O médico receita o quê? INF Comprimidos. Ou pode receitar injecções. INQ2 Pronto, as injecções e os comprimidos, são tudo quê? INF (...) É farmácia (...) . INQ2 A gente vai à farmácia para, para comprar quê? INF Para comprar o tratamento para a doença. INQ1 Olhe, portanto, o, o mé-, o médico receitou-lhe o quê? Receitou-lhe um?... INF Um remédio, ou uns comprimidos, INQ1 Pois. INF ou umas injecções. INQ2 Pois.
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INQ1 O que é que a gente toma para passar a tosse? INF Olhe, isso há muitas coisas. INQ1 Uma coisa assim muito doce que se toma com uma colher? INF (...) É o mel. INQ1 Sim. E o que é?... INQ2 Mas aqueles que vinham dentro assim duns frascos que se tomavam? INQ1 Que se compra até na farmácia? INQ2 Que eram assim doces? INF Pois. INQ2 Portanto, o que é que se tomava, sei lá, para, para passar as lombrigas, para, portanto?... INF Ah, é... Para lombrigas, não sei. Mas eu tenho aí uns frascos ainda que eu comprei (...) para mor das constipações - que (...) eu também me constipo às vezes. INQ1 E são frascos de quê? INF (...) Tenho aí vários frascos. INQ2 De quê? INF Desses. (...) Têm uma coisa grossa lá dentro, branca. É... É o quê que lhe chamam? INQ2 Um xarope? INF Não é. Bronconusil. Bronconusil. INQ2 ...nusil. Mas o Bronconusil é um quê? É um?... INF É um remédio. INQ2 E o xa-, o que é o xarope? INF Aquilo não é xarope. Aquilo é um... INQ2 Rhum-rhum. INF Ora ele! Eu até lhe posso mostrar que eu devo ter além. INQ2 Deixe estar, deixe estar. Pois. INF Já não servem, pois, já têm mais de um ano. INQ2 Pois. INF Aquilo já não... INQ2 Pois. Ó tio Hermes, e aquela pessoa que tem sempre assim, que está sempre com, com dores na cabeça, que tem que tomar re-, comprimidos todos os dias, diz: "Olha, aquela pessoa tem uma"?... INF Ora, tem uma dor de cabeça. INQ2 Pois. INQ1 Olhe, e quando a gente come e fica assim muito mal disposto, começa... Tem quê? INF Isso acontece-me a mim muita vez. INQ1 Pois. É ter quê? INF É o estômago que (...) não faz a digestão a horas. INQ1 Pois, e então tem que... E então tem vontade de quê? INF De lançar fora.
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INF Olhe, (...) eu todos os dias... É a coisa que eu ele me faz melhor é o leite. INQ1 Pois. INF Todos os dias vou a ele à noite. É uma úlcera, não é? INQ2 Diga? INF Uma úlcera. INQ2 É sim senhor. INQ1 Olhe, e aquelas pessoas que têm, que sofrem com muita falta de ar, diz-se que têm o quê? INF Têm bronquite crónico. INQ2 Aqueles que fazem assim rhuh!, que às vezes não podem respirar? INF Pois, é um bronquite crónico. INQ2 Nunca chama? INF Ou asma. O meu pai tinha isso. INQ2 Rhum. INF E eu também me parece que já tenho arremessos disso. INQ2 Está bem. INQ1 Olhe e uma doença que dá na garganta, que é mais forte que as, que a, que as anginas? INQ2 Que até antigamente alguns miúdos morriam daquilo? Crescia assim umas coisas na garganta e a pessoa quase que se afo-, afogava-se? INF Isso é... É o quê? Anginas. INQ1 Não, é mais forte de que isso. INF Mais forte que as anginas? INQ1 É. Assim, a pessoa ficava atabafada... INF Pois. Ora, o que é (...) ?... Que ele agora uma rapariga moça aí foi fazer tratamento até. INQ1 É também na garganta, mas é mais forte. INF É na garganta, pois. INQ1 Fica assim ataba-, parece que ficavam atabafados. INF Não sou capaz de dizer o nome disso. Agora há poucos dias uma rapariga aí, uma moça, INQ1 Já... INF (...) foi ao médico a tratar disso. INQ1 Já ouviu falar... INF Que ela já não falava. INQ1 Pois. Já ouviu falar em garrotilho? INF Garrotilho? Já. Era isso? INQ1 Era isso. INF Não sei se ela tinha isso, pois bem. (...) Mas (...) ele havia uma doença que lhe chamavam garrotilho.
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INQ1 Olhe, mas não se dizia que as bruxas deitavam mau-olhado? INF Hã? INQ1 Que as pessoas deitavam mau-olhado? Parece que a criança tem mau-olhado? INF Não sei. Eu bruxas nunca cheguei a ver. Risos INQ1 Nunca se contou aqui histórias de bruxas, antigamente? INF Pois, diziam que havia bruxas mas eu nunca as vi. Às vezes, com certas coisas, (...) cheguei a dizer assim: "Vi-me numa bruxa", mas (...) era com certos trabalhos. INQ1 Pois. INQ2 Rhum-rhum. INF Que me custava! INQ1 É isso. INF (...) E depois dizia assim: "Parece que vi as bruxas"! Mas não as via, (...) nunca cheguei... INQ1 Olhe, e nunca se falava no quebranto? - uma pessoa estar com quebranto. INF Sim senhora. INQ1 Como é que é? INF O quebranto é uma pessoa - é uma criatura -, até pode querer bem a outra, (...) e de olhar para ela e dar-lhe quebranto. INQ1 Ah! INF Pois. INQ2 Olhe, e como é que... INF (...) Ele até me parece que lhe chamavam um olhar - a essa doença. INQ1 Um olhar? INF Às vezes até pessoas mesmo que queriam bem às outras... INQ1 Pois, pois. INF Por lhe quererem tão bem estavam 'encrentes' - pessoas (...) que têm uma certa vista - e faziam-lhe mal. INQ1 Sim senhor.
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INQ1 Olhe, e não costumava pôr a, uma coisa na bota, que era para não deixar entrar água? INF Pois. INQ1 Passava... INF (...) Na bota, uma polaina, ou (...) uma coisa qualquer para não deixar entrar a água para dentro. INQ1 Mas não havia um material que se esfregava nas botas? INQ2 Não, isso é uma outra coisa. INF Havia um... É o unto. É o sebo. INQ1 Olhe o, na, na bota há um fio que é para amarrá-la, como é que chama? INF Pois. É o atacador. INQ1 Então o atacador serve para?... INF (...) Para 'atacoar' as botas. INQ1 Olhe, mas como é que 'atacoa'? Portanto, dá um?... Pega no, no, no atacador e dá um?... INF Dá um nó. INQ1 Olhe, e não se usava nada aqui para baixo que tivesse umas coisas em sola de madeira, com sola de madeira? Ou era só, sempre... INF Dantes havia. Chamava-lhe a gente tairocas. Ainda usei (...) umas tairocas. (...) Havia aí um homem que fazia solas de pau e pregava ali (...) a coisa (...) de cima, (...) aqui a fazenda de cima, pregava-a àquela madeira e a gente calçava aquilo. INQ1 Rhum-rhum. INF De maneiras que (...) de Inverno aquilo até era quente. INQ1 Pois. INF Mas faziam doer os pés. INQ1 Faziam dores nos pés? INF Pois. Aquilo era duro.
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INQ Olhe, tio Hermes, diga, antigamente, portanto, a que horas é que se costumava comer? E que nome é que dava? Portanto, mat-, era o mata-bicho primeiro, matar o bicho. INF Pois. INQ E depois a que horas é que era o almoço? INF O almoço, no outro tempo - porque as horas não eram como agora, as horas hoje são diferentes -, a gente ia para uma ceifa, o almoço era às sete horas. Mas era já com alto sol! Começávamos ao nascer do sol e depois trabalhávamos aí talvez duas horas. O almoço era às sete horas e o jantar era às doze. E depois, à tarde, tínhamos a merenda, era aí (...) às cinco da tarde. E depois largávamos o trabalho pelo sol posto. Porque no mês de São João, naquele tempo, no dia 22 de São João, punha-se o sol (...) às vinte e duas horas. INQ2 Para as nove? Às vinte e duas horas? INF Sim senhora. Eles têm modificado isto. INQ2 Eles quem? INF Ora, os governos, as nações. INQ2 Ah, de, de estar até mais tarde? INF (...) Pois, as nações umas com as outras, para terem comunicações. (...) Naquele tempo, o sol punha-se (...) às vinte e duas horas, (...) e às vinte (...) e quatro horas no dia 22 de São João. Era o dia maior que tínhamos. Ele depois dava (...) em minguar, em minguar, em minguar, em minguar, todos os meses minguava meia hora; no dia 22 do Natal, punha-se o sol às quatro horas da tarde. Pois. INQ2 Mas o tio Hermes acha que se mudou isso como? INF Ora, isso foram os governos uns com os outros, por causa dos transportes. INQ2 Mudaram a hora? INF Para conduzir... Mas isso tudo foi uma coisa que (...) não merecia a pena. Ele mudaram as horas mas não mudaram a rotação do sol. (...) Tem sido toda a vida o mesmo. INQ2 Ó tio Hermes e a que horas é que nascia o sol quando se punha assim, no dia 22 de Ju-, de, de, de São João, a que horas é que nascia mais ou menos? INF Não estou certo. (...) Aí às cinco horas talvez. Às cinco horas. Que a gente depois íamos almoçar às sete. INQ2 E pegavam às cinco? INF Pegávamos às cinco. INQ2 E a que horas é que paravam? INF Era mesmo ao nascer do sol. INQ2 E a que horas é que paravam de trabalhar? INF Ao sol posto. Ao sol posto, quem lá andava de empreitada - quem era à jorna. INQ2 Claro. INF Quem andava de empreitada (...) depois de o sol posto ainda trabalhava mais uma hora. E trabalhava outra hora antes de nascer o sol. Pois. A gente trabalhava uma hora antes de nascer o sol. Ao nascer do sol (...) - a gente dormia lá -, íamos levantar as camas, tirávamos uma buchazinha, depois começávamos a ceifar até às sete horas, que era o almoço. INQ2 Então trabalhavam quantas horas seguidas? INF Eu sei lá (...) quantas horas nós trabalhávamos?! Nós começávamos ao nascer do sol - que (...) era talvez às cinco -, até ao almoço trabalhávamos duas horas - aquele que era de sol a sol. INQ2 Pois. INF E depois era das sete horas até ao meio-dia, que era às doze. E depois tínhamos duas horas de sesta. Tínhamos duas horas de sesta. E depois íamos ceifar. Tínhamos - não sei às quantas horas - (...) às cinco, era a merenda, comíamos um gaspacho. INQ2 O que é isso? INF Um gaspacho? É uma pouca de água com vinagre e azeite, e migava-se-lhe umas sopas. É o feitio duma salada. INQ2 Pois. INF Pois. Mas aquilo (...) não tinha salada. (...) INQ2 Era só pão e... INF Era só o pão e a água. INQ2 E o azeite e o vinagre. INF E era o (...) vinagre e o azeite. Pois. Comíamos aquilo. E depois (...) deixávamos ao sol posto, depois ceávamos. Comíamos à noite depois qualquer dentada , qualquer coisa. INQ1 Então e como é que chamava a isso que comia à noite? Era à hora?... INF Era a ceia. INQ2 E a que horas era, mais ou menos, que ceavam? INF Ora, aquele que largava ao sol posto, (...) em largando o trabalho, podia começar a comer. E aquele que era de empreitada, que tinha que fazer serão, sem acabar o serão não podia comer. INQ1 Rhum-rhum. INF Pois. INQ1 Portanto, quando a gente vai comer é porque tem?... INF Vontade. INQ2 O que é que a gente sente? Diz que está com quê? INF Está com vontade de comer, ou está com fraqueza, ou qualquer coisa. INQ1 "Olha, eu vou comer porque já tenho muita"?... INF Muita vontade, ou muita fraqueza. INQ2 Olhe...
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INQ1 E era guloso quando era novo, ou não? INF Eu, quando era novo, era cá da pinga. Risos INQ1 Mais do que doce. INF Em lhe arrumando dois ou três começava logo a cantar. INQ2 Começava... INF É, era logo. INQ1 Era para afinar a voz. INF É. Ele não se criou aqui ninguém como eu. Não senhor! Nem aqui perto! Eu até (...) em eu me pondo a pensar nisso, ainda me parece que me ponho mais doente. INQ2 Pois, não vale a pena. INF Pois. Eu não posso pensar na minha vida. Não senhor! Não posso pensar na minha vida. Eu chegava a uma parte qualquer, aonde quer, juntava um povo de roda de mim. É isso. E hoje não sou nada. Hoje não sou nada! Onde quer juntava um povo de roda de mim! Sim senhor! (...) INQ2 ... INF Aqui nunca tive grande importância. Sempre havia pessoas a atirarem-me. Mas em chegando a outro povo qualquer, que me conhecessem, isso, em eu chegando, armava-se logo um baile. Logo! Onde me conheciam, que eu chegasse a um povo qualquer, fazia-se logo um baile. INQ1 Pois. INF Começava de cante e de baile, pronto! Cantava noites inteiras e dias, e (...) não me enfadava. Hoje está isto já muito mau. Está já muito mau! E o que lhe hei-de fazer? Eu não tenho remédio para isto.
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INF O meu professor (...) era bom para mim. INQ1 Quando não se... Mas batia, não era? INF Mas (...) era muito mau, mas (...) para mim não era. INQ1 Não? Ele nunca lhe deu assim reguadas, nas mãos? INF Às vezes, umas reguadazitas. Isso. Mas eu, era sempre devagar. INQ1 Era devagarinho? INF Eu era pequenino (...) . Eu tinha sete anos. Eu sempre fui pequeno. INQ2 Pois. INF Com sete anos (...) cheguei à segunda classe. Depois (...) ele era já velhinho, deixou de dar escola e eu deixei de ir à escola. Ainda cheguei à segunda classe. Com dez anos, já andava a guardar éguas num monte aqui mais de uma légua desviado. Com dez anos! Éguas e machinhos novos, filhos delas. Eram quatro éguas e quatro crias. Pois.
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INQ1 No Carrapatelo, as pessoas costumam trabalhar aonde, normalmente? INF (...) Nas herdades. INQ1 Então... INF E às vezes aí nas propriedades dos seareiros, mas isso os seareiros aí são poucos, os proprietários. INQ1 Então, eles não trabalham na fábrica, trabalham no?... INF Alguns trabalham numa fábrica além ao pé de Mourão, na Guadiana. INQ1 Rhum-rhum. INF E outros trabalham na agrária. INQ1 Então eu digo, sei lá, o lavrar e, e cavar a terra são trabalhos do?... INF Do campo. INQ1 Olhe, e, por exemplo, se, o tio Hermes portanto, quando trabalhava no, no campo, di-, diga-me assim, portanto, quando é que se começava a trabalhar a terra duma maneira e depois o que é que se fazia nela durante todo o ano? Ou nos quintais ou no?... INF Primeiro fazia-se o alqueve num ano; e depois fazia-se o atalho - era (...) outra lavoura por cima daquela. INQ1 No mesmo ano? INQ2 Mil setecentos e quarenta. INF No mesmo ano. E depois no tempo da sementeira, semeava-se. INQ1 Em que altura é que era? Portanto, diga-me assim pelos meses. Portanto, o que é se cos-... INF (...) É no Setembro e Outubro. Ele começava-se em Outubro. INQ1 Começava-se a quê? A fazer o quê? INF A semear. INQ2 Olha, Celeste... INQ3 Encontrei já. INQ2 É o setecentos e três, um e o setecentos e três, dois também. INQ1 Portanto, começava a semear em Outubro? INF Em Outubro. INQ1 E depois em Novembro o que é que se fazia? Ou ainda se fazia, em Outubro ainda se fazia alguma coisa? INF Semear em Outubro; Novembro, muitas das vezes, era quando se acabava. Sempre se levava aí mês e meio, ou dois meses, a fazer a sementeira, que é a sementeira das searas. INQ1 E em Dezembro? INF Em Dezembro é a azeitona. INQ1 Em Dezembro é só a azeitona? INF É a apanhar a azeitona. INQ1 Rhum-rhum. INF Pois. INQ1 E, e em Janeiro? Vá-me dizendo o que é que se fazia assim nos meses todos de seguida? INF Em Novembro... Novembro, ainda muitas das vezes se apanha a azeitona. (...) Em que mês estamos nós? Em Janeiro. INQ1 Em Janeiro. INF Ainda há aí muita gente à azeitona. Este ano a novidade foi grande. INQ1 Rhum-rhum. INF Ainda há aí família à azeitona. Eu tenho até uns versos a esta coisa das sementeiras que eu talvez lhos dissesse já. INQ1 Rhum-rhum.
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INQ Não tem mais sem ser esta? Portanto, tinha a erva com o trigo?... INF Era a erva com o trigo e era esta. Da agricultura, parece-me que não tenho mais a este fim. Parece-me que não tenho mais a este fim. Pois. INQ Olhe, o, o tio Hermes, portanto, costumava fazer esses versos era quando estava assim no campo, quando estava a guardar a vaca, ou?... INF Pois, era quando estava sozinho, fazia estes versos, ia escrevendo e depois decorava. Ia fazendo os versos, e escrevendo, em chegando ao fim da conversa, parava. E depois estudava aquilo, decorava-os. INQ Mas lembrava-se deles, não era só em casa, portanto, quando estava em casa? INF Não, lembrava-me em toda a parte. Porque eu em me lembrando do primeiro verso - eu estudava o cante com o primeiro verso -, em me lembrando do primeiro verso, lembrava-me logo do cante. Pois. De maneiras que... INQ E como é que se lembra de fazer aquela do, da erva e do trigo? INF Essa da erva com o trigo foi uma conversa com um tipo de cá. Andava mirando uma seara - e esse ano chovia muito - (...) e tinha a seara abafada de erva. E ele (...) estava zangado com a erva (...) que lhe estava dando cabo da seara, e eu ia passando, digo: "Então, estás zangado porquê"? "Ah, não vês isto?! É que eu tenho o trigo abafado em erva, nem colho daqui nada", e isto, e aquilo, lá a pelejar a vida dele, coitado. "Para que será este enredo da erva"? Eu disse: "A erva também faz falta, homem"! "Há-de ter que ver a erva, a falta que faz"! E depois abalei com a vaca, cheguei lá, comecei a escrever isso. Comecei a falar: primeiro foi, eu fiz a conversa dele, que era ele a dizer mal da erva, e depois fiz a conversa da erva a dizer (...) que dava resultado. Pois.
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INF Eu, metade das coisas não me lembram! Eu já estou muito esquecido. Metade das coisas não me lembram! INQ Ó tio Hermes, "Estas covas e quebradas, que vinha a terra 'abrajear'", isto era, eram aí terras de alguém, ou eram terras que estavam aí, que não eram de ninguém? INF Bom, eram, nessas herdades - eram nas herdades -, eram terras que estavam anos sem serem cultivadas. E parte (...) dos anos, estavam sempre 'abrajeadas' de água, que não se lhe podia lá entrar. Pois. Não tinham escorrente, parte das vezes nem um ribeiro tinham, nem coisíssima nenhuma. E a água parava ali um Inverno inteiro e uma Primavera. E não se lhe podia lá entrar, não se podia cultivar. Tudo quanto lá se punha, tudo lá ficava atascado. Pois. INQ E não lhe davam aproveitamento nenhum? INF Em anos bons, em anos que não eram para aí de muitas invernas, muitas vezes (...) até era aonde se criavam as searas melhores. Isso criavam às vezes, (...) em não sendo anos de muitas invernas. Isso criavam searões que aquilo (...) era a seara toda encostada uma na outra. Pois. Mas em sendo assim invernas grandes e de mais, perdia-se. INQ Os donos dessas terras arrendavam-nas muitas vezes? INF Não. Às vezes era mesmo por conta deles. Mas é que depois chegava a um certo ponto, criavam grandes pastagens, e depois (...) quando aquilo dava em enxugar, metiam-lhe gados para ali para pastarem. Pois. Sim senhora! (...) O brejo é assim: cria (...) muita grama - não sei se sabem o que é a grama? A grama é uma erva (...) que vai sempre furando, sempre, sempre, sempre, sempre. Chega a pontos, custa-se caro. Custa caro uma parelha a arrancar uma charrua. E de maneiras que é a grama, é o 'cereaço', aquilo tudo junto, isso nem!... Os animais custavam caro (...) a romper aquilo. Pois. INQ2 Isso era... Queres perguntar mais alguma coisa? INQ1 Pois, é que o tio Hermes, além de brejos, falou de outra coisa, creio que era os vais? INF São os vales, pois. São vales. São terras direitas naquelas covas que têm, às vezes, cabeços dum lado e outro, e têm uma vargem no centro. Aquela cova, depois, todas as águas para ali vão ter, (...) e estão invernos inteirinhos aqueles terrenos tapados de água. Pois. INQ2 Mas isso chama uma várzea, é? INF Hã? INQ2 Chama várzea a isso? INF É uma vargem. INQ2 São aqueles terrenos que são alagadiços? INF Pois. São terrenos que são alagadiços. Porque de roda são cabeços e depois alagam-se. Todas as águas ali vêm ter, alagam-se.
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INF Uma vez, um espanhol... Um espanhol, uma vez, semeou uma seara numa cova, assim num brejo desses. Alagou-se em água, nunca deu nada. Dizia ele: "Deixa estar que eu para o ano hei-de semear uma seara no cabeço". Para o outro ano, semeou a seara lá em cima no cabeço. Veio uma seca, (...) acabou-lhe com a seara, também não colheu nada. E depois, diz ele, para o outro ano, diz ele: "Este ano hei-de semear na cova e no cabeço". E dizia ele para os outros espanhóis: "Este ano tenho 'Dios' preso pelas patas"! "Então"? "'Hombre', olha, se vier um Inverno, cria-se (...) a seara do cabeço; se vier uma seca, cria-se a da cova". De maneiras que o que é que havia de acontecer? De Inverno veio (...) uma inverna grande, perdeu-se a da cova; depois lá mais por diante, já de Primavera, veio uma seca muita grande, perdeu-se a do cabeço também. Nunca aproveitou nem uma nem outra. Risos E ele já dizia que tinha 'Dios' preso pelas patas. Risos Foi. Mas (...) nunca foi capaz de o prender.
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INQ1 E, em Março, tio Hermes, que é que se fazia? INF Em Março lavrava-se também. (...) A lavoura, cá no Alentejo, dura quase todo o ano. Até de Verão! INQ1 Rhum-rhum. INF Até de Verão se ele lavra! INQ2 Espere aí, espere aí. Olhe que esse é muito grande. INQ1 Portanto, em, em Março também se lavrava, era isso? INF Pois. INQ1 E não se apanhava nada em Março? INF Não. Não havia nada; quer dizer, nesse tempo, em Março, a laranja. É quando se colhe a laranja. Colhe-se a laranja e (...) transporta-se (...) de terra em terra, de praça em praça. Pois. INQ1 Rhum-rhum. INF Fazem-se muitas coisas. (...) E lavra-se também. INQ1 Lavra-se para quê? Portanto, em que altura... INF Ora, ele terras que é preciso lavradas. INQ1 É para semear alguma coisa nessa altura? INF Não. Nesse tempo, nessa altura, semeiam-se grãos.
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INF Em Abril, (...) já há aí frutos, parte das vezes, para vender - coisas. INQ E o que é que se fazia nas terras em Abril? INF Hã? INQ Em Abril não se fazia nada nas terras? INF Faz. Faz-se atalhos, dá-se o segundo ferro à terra, em Abril, e Maio, e, às vezes, São João. Sim senhor. INQ E então em que mês é que se ia para, para as searas para tirar as, as ervas daninhas para fora? Para limpar... INF (...) Para se tirarem as ervas? INQ As ruins. As ruins, aquelas ervas ruins para a seara? INF Ora, então isso (...) era em todo o tempo, conforme a seara criava erva. (...) Há searas que não criam erva, a bem dizer, (...) não são mondadas - isso chama-se-lhe a monda. INQ Rhum-rhum. INF E outras que têm muita erva, começa-se logo a mondar cedo. INQ Em que altura mais ou menos, tio Hermes? INF Ora, parte das vezes, ele ainda se anda a semear e já se andam a mondar outras. Pois. (...) INQ E um... INF Mas (...) hoje já a modos que, a bem dizer, ninguém vai à monda. Fazem a tal monda química. Já, a bem dizer, as mulheres não vão à monda. Agora (...) antigamente juntavam-se ranchos de mulheres à monda. E mondavam todo o dia. E cantavam. Havia até uma coisa que cantavam: " (...) Ó que lindas mondadeiras, lenços de todas as cores, vão mondando e vão cantando cantigas aos seus amores"! Eu gostava muito de ouvir cantar aquilo!
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INF O cante alentejano era bonito! É, era bonito! Eu era perdido (...) por o cante alentejano. Eu ensinava até a cantar cantes. Eu fazia cantes alentejanos. Hoje - vossemecês podem-se admirar -, mas eu, hoje, eu tenho tido aí essa telefonia, e ouço cantar estrangeiros, não ligo àquilo. Não senhor! Não ligo àquilo. Eu não sei o que aquilo é! Nem lhe conheço... (...) Não sei o que eles dizem nem o que eles cantam. E o cante é também tão diferente! Pois. (...) Eu não ligo, muitas das vezes, ao cante estrangeiro. Não senhor! Não ligo. Então, são coisas! Porque eu cantava e cantava! Porque em eu começando a cantar, juntavam-se grupos de pessoas de roda de mim. Pois. Hoje é que já não presto. Mas: "Ó Alentejo não desprezes o teu cante alentejano, esse cante do estrangeiro para ti é um engano. Para ti é um engano, tu já andas enganado, ó Alentejo não desprezes o que sempre tens cantado". Isso são tudo coisas feitas por mim. Pois. E às vezes ouço essa gente estrangeira, ah, eu não percebo dali nada, nem sei o que eles dizem, não sei se os versos são bons nem se são ruins. Não percebo as palavras! O cante também é uma coisa para ali sem talho nem feição, eu não sei o que aquilo é. Pois. Uma vez ouvi um festival - um festival (...) dumas poucas de nações -, cantaram umas poucas, nove ou dez pessoas, aonde cantou uma inglesa, uma rapariguita nova inglesa - aparecia na televisão, eu estava a ver na televisão. Eu não sabia o que ela dizia - isso não sabia -, mas cantava tão bem, tão bem, tão bem que eu até não sabia o que havia de dizer àquilo, tão bem que cantava! Vi doutra vez um (...) outro festival, eram cá portugueses, eram nove, parece. A pessoa cá que eu ouvi cantar melhor, cá para o meu gosto, foi a que não lhe deram pontos nenhuns. Digo: "Ora esta"! Cantaram uns, como lhe digo, aquilo não era nada, tinham para ali pontos que era aos cinco e aos seis e às dúzias, e esta tão bem que cantava não lhe deram pontos nenhuns! "Eh mãe santíssima"! Doutra vez, ouvi outro festival, eram três a cantar, cada um de sua vez. O melhor que lá cantou estava tocando num violão: "Eu mais o meu violão, ão, ão, ão, ão! Eu mais o meu violão, ão, ão, ão, ão! Eu mais o meu violão, ão, ão, ão, ão"! Digo: "Ora, ora, ora, o que é isto senhor"?! Risos (...) E ainda foi o que cantou melhor dessa vez, mais ao meu gosto. Mas só dizia isto: "Eu mais o meu violão, ão, ão, ão, ão"!
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INF Eu se fosse para Lisboa, tinha muita vez que ser ofendido em ouvindo certas coisas. Era pois. Então?! Tinha que ser ofendido lá. Porque ele há coisas que (...) eu não lhe dou (...) valor. Estar a ouvir aquilo, (...) eu até me eu aborrece de ouvir aquelas coisas! Há aí, ainda bem não já cantam... É alentejano. É uma mulher que canta, mas eu não sei os versos. Canta: "Ó rama, que linda rama, ó rama da oliveira, o meu par é o mais lindo que anda aqui na roda inteira"! Gosto de ouvir aquilo, vê? Sim senhor! INQ Mas isso não se cantava aqui? INF Não. Isso é (...) do Alentejo, mas é para mais INQ Mais para o alto? Pois. INF aí para o Baixo Alentejo. INQ E no Alto também se canta isso. Ali para os lados de Portalegre... INF Pois. INQ Também cantam... INF Mas é porque aprenderam o cante àqueles. É uma mulher é que canta isso.