É com imenso pesar que damos notícia do falecimento de Maria Helena Farmhouse da Graça Mira Mateus (Lisboa, 30 de março de 2020), Professora Jubilada da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL) e investigadora do CLUL durante décadas. A Maria Helena, como sempre a tratamos, foi aluna, professora e investigadora na FLUL. Assumiu vários cargos de gestão em unidades orgânicas nesta escola e na Universidade de Lisboa (UL), dos quais destacamos os seguintes: (i) Presidente do Conselho Científico da FLUL (1997-2000);
(ii) Membro da Comissão Científica do Senado da Universidade de Lisboa (1992-1994; 1997-2001); (iii) Vice-Reitora da UL (1986-1989);
(iv) Presidente do Conselho Diretivo da FLUL (1983-1985); (v) Presidente do Conselho Pedagógico da FLUL (1979-1981).
Embora as atividades de docência, investigação e gestão tenham decorrido maioritariamente na UL, o seu espírito de iniciativa levou-a a fundar, em colaboração com os seus pares, as seguintes instituições: (i) a Associação Portuguesa de Linguística (APL); (ii) a Associação de Professores de Português (APP); (iii) o Instituto de Linguística Teórica e Computacional (ILTEC).
Embora Maria Helena Mira Mateus fosse fonóloga, a sua atividade não se restringiu a este ramo da Linguística, abarcando coordenações de projetos e publicações nos domínios da Linguística Geral, da Crítica Textual, das Tecnologias de Língua, da Política de Língua, da Variação Linguística e do Ensino de Língua Materna e Não Materna. A título ilustrativo, foi autora da edição crítica de Vida e Feitos de Júlio César, publicada pela Fundação Calouste Gulbenkian; coordenou o Eurotra-P (1987-1992), na área da tradução automática, parte integrante do projeto internacional EUROTRA, financiado pela então Comunidade Económica Europeia; dirigiu o projeto Dicionário de Termos Linguísticos (APL/JNICT/ILTEC); coordenou a Gramática da Língua Portuguesa, em colaboração com Inês Duarte, Isabel Faria e Ana Maria Brito (1ª edição: 1983), obra que recebeu o Prémio da Sociedade da Língua Portuguesa e que contou com uma 5ª edição, em 2003, substancialmente revista e aumentada; coordenou a Terminologia Linguística para os Ensinos Básico e Secundário (TLEBS - Ministério da Educação), base do atualmente em vigor Dicionário Terminológico ( http://dt.dge.mec.pt/ ); coordenou os projetos Diversidade Linguística na Escola Portuguesa (2003-2007) e Bilinguismo e Aprendizagem do Português como Língua não Materna (2007-2012: ILTEC/Fundação Calouste Gulbenkian), que envolveram várias escolas públicas portuguesas e cujos resultados foram publicados em livro pela Fundação Calouste Gulbenkian.
Apesar da atividade noutras áreas da Linguística, Maria Helena Mira Mateus sempre teve na fonologia a sua área de eleição. Licenciada no contexto da forte tradição filológica da FLUL, deslocou-se a Paris, nos anos 60, para preparação de doutoramento em filologia medieval; aí, estudando com Standford Schane, descobre o quadro teórico da Gramática Generativa, após o que decide substituir o seu projeto inicial por outro no domínio da Fonologia Generativa. A sua tese de doutoramento, publicada pela JNICT sob o título Aspectos da Fonologia Portuguesa (1975), foi a primeira sobre o português elaborada neste quadro teórico. Muitas das suas publicações refletem o seu trabalho pioneiro no domínio da fonologia do português, com testagem de vários modelos generativos propostos nas últimas décadas. Em 2000, em colaboração com Ernesto d’Andrade, publicou, na série da Oxford University Press dedicada aos sistemas fonológicos das línguas do mundo, o volume The Phonology of Portuguese, obra de referência para todos os que trabalham neste módulo gramatical do português. Em 2005 (com 2ª edição em 2016), e em colaboração com Isabel Falé e Maria João Freitas, publicou o volume Fonética e Fonologia, editado pela Universidade Aberta e usado até hoje como manual das unidades curriculares de licenciatura que trabalham conteúdos programáticos relacionados com os dois domínios. Toda a sua obra constitui uma referência obrigatória para investigadores, docentes e discentes do espaço lusófono que trabalhem atualmente sobre a estrutura sonora do português.
A constante atualização teórica de Maria Helena Mira Mateus foi exportada para a prática docente. Os saberes adquiridos em Paris foram, desde logo, partilhados com estudantes da FLUL nos anos 60/70, criando, para o efeito, o Grupo de Estudos de Linguística Teórica numa escola em que vigorava ainda, no ensino e na investigação, uma forte vertente filológica. Esta aposta na formação teórica atualizada de jovens estudantes mudou o paradigma de investigação em Linguística em Portugal e levou a que muitos linguistas das gerações subsequentes adotassem o modelo da Gramática Generativa no estudo de vários módulos gramaticais, tendo o seu trabalho tido impacto
inegável no panorama da investigação em Linguística desenvolvida, nas últimas 5 décadas, no espaço lusófono. Linguista com obra divulgada internacionalmente, viu o reconhecimento dos seus pares, muitos deles antigos alunos, registado na publicação de dois
volumes de homenagem organizados por Ivo Castro e Inês Duarte e editados pela Imprensa Nacional/Casa da Moeda sob o título Razões e Emoção: Estudos para Maria Helena Mateus (2003). Neles se incluem 49 artigos de diferentes especialidades, 20 dos quais da autoria de colegas de outras instituições que não a FLUL, nacionais e estrangeiras.
Maria Helena Mira Mateus não se destaca apenas na academia: através de artigos de opinião, entrevistas e participação em júris de atribuição de prémios, é considerada uma figura de relevo na sociedade portuguesa, tendo este papel sido formalmente reconhecido em 2002 através da atribuição, por Jorge Sampaio, então Presidente da República Portuguesa, do Grau de Grande Oficial da Ordem de Sant’Iago da Espada.
Em reconhecimento da sua intensa e modelar atividade profissional, que tanto prestigiou a Linguística Portuguesa, e como forma de lhe agradecer o sempre ter representado a UL com sabedoria, dedicação e criatividade, no mundo académico e na sociedade, deixamos aqui esta nota, recordando, com orgulho e saudade, a investigadora, a professora e a mulher inesquecível que foi Maria Helena Mira Mateus.
Testemunhos
Todas as outras vezes
Maria João Freitas
31 de março de 2020
Muitos textos que relatam memórias começam com a expressão “a primeira vez que…”. Banal… Mas as nossas memórias nunca são banais.
A primeira vez que soube da existência da Maria Helena foi nas aulas da disciplina de Fonética e Morfologia (FLUL, ano letivo de 1983-84), nas quais Ernesto d’Andrade ensinava… Fonologia! Um dos exercícios propostos foi a leitura crítica de Aspectos da Fonologia Portuguesa, versão editada da tese de doutoramento de Maria Helena Mateus. Pediu-nos o Ernesto que identificássemos lapsos na formalização de algumas das regras fonológicas no texto. Era assim, o Ernesto, de quem a Maria Helena tanto gostava. Aprendi tanta Fonologia com ambos!
Todas as outras memórias se foram construindo ao longo dos anos que se seguiram até quinta, 26 de março de 2020, o último dia em que ouvi a voz da Maria Helena. O atual turbilhão de emoções é parte integrante do mesmo bloco de memórias. Nele guardo a professora que discute com os alunos análises fonológicas e com eles treina o entusiasmo pela descoberta e pela inovação. Nele guardo a amiga que partilha alegrias e angústias, que formula as questões mais inesperadas, procurando incessantemente momentos para troca de ideias e afetos.
Se fosse pintora, desenharia a Maria Helena encostada à porta de uma casinha caiada, no meio do campo algarvio, com um colar de contas brasileiras a destacar-se sobre o verde pálido do vestido, recebendo amigos com uma postura genuinamente feliz. Os amigos entrariam a seguir, colocando sobre a mesa iguarias, conversas e sorrisos.
Se fosse escultora, criaria uma peça que representasse a aliança perfeita entre a criatividade, a inteligência e a tenacidade.
Só sei dos sons das línguas. Por isso, imagino soantes a superarem obstruintes, espraiando-se depois em vogais abertas que, amplas, libertam a transparência da alma e nos embalam em conversas amenas, numa sala em que felinos estimados nos inspecionam e se aninham entre as nossas palavras.
Obrigada, Maria Helena, pela Fonologia e por tudo o mais que me ensinou.
João(zinha)
Celeste Rodrigues
No sobressalto de uma voz amiga, recebo a notícia que nunca queria ter recebido… A nossa querida Maria Helena estava já a viajar (sozinha, como ela gostava!) para um lugar distante, a partir do qual nos irá procurar guiar. Poucos dias antes de partir sem derradeiro aviso, tinha falado com ela sobre tudo e nada. Nunca se sabia onde as conversas com esta amiga especial iam parar… Da fonologia, ao ensino, à música, à pintura, à poesia (que lia como poucos!) era sempre um passo pequenino. Conselhos para lá, conselhos para cá, uma constante preocupação com os outros, como era seu apanágio. “Até breve, minha querida!” – como em todas as despedidas.
Partia tranquila, tal como entrou na minha vida nos anos 80. Esteve presente em todos os momentos especiais da minha vida académica, em trabalhos científicos comuns, na direção da Associação Portuguesa de Linguística, em incontáveis Encontros científicos, mas nunca tive o privilégio de ser sua aluna. Sou fiel leitora dos seus muitos escritos, onde, tantas vezes, encontro respostas e, outras tantas, perguntas para as quais ninguém sabe ainda a resposta.
Graças a esta proximidade, a nossa amizade estreitou-se com o tempo. O que mais me marcou na convivência com a Maria Helena foi a sua personalidade. Altiva ou humilde, alegre ou triste, mas sempre verdadeira, generosa e terna. Toda a minha família beneficiou do seu carinho e lhe presta homenagem, guardando-a sempre nos nossos corações.
“Até breve, minha querida!”, que o tempo não faz sentido nenhum.
Maria Armanda Costa
A Maria Helena foi marcando a minha vida desde que a encontrei na FLUL como minha professora de Fonologia (1979). A atracção (de mim por ela) foi imediata. Seduzia-me a forma como passava de um registo jovial, em que as peripécias de uma vida cheia nos deslumbravam, para um registo formal, quase austero, em que nos abria horizontes para uma Linguística estimulante, que nos exigia formalização, desafios de raciocínio, abordagem bem diferente da que conhecíamos até então, que mais nos afastava do que nos aproximava da Linguística, a nós que tínhamos decididamente enveredado por esse caminho. Nada de confusões entre a leveza e alegria das coisas da vida e a exigência nas análises, na teorização e, aprendi, a exigência colocada aos trabalhos que nos pedia: “podia ser muito interessante se não tivesses feito isto em cima do joelho”. Lição para a vida toda.
A paixão pela fonologia generativa não a afastava do mundo real, como era o caso da necessidade de formação científica dos professores do ensino básico e secundário. Foi então que a acompanhei numa equipa de direcção da Associação de Professores de Português. Dado o período que atravessávamos (inícios de oitenta), era imperativo que a ciência que se fazia na universidade desse fundamentos à formação de professores de onde estava arredada. A Maria Helena, ao leme da APP, fazia o que podia para intervir e aí ganhou reconhecimento entre os professores. Durante a primeira década de 2000, já no ILTEC, a Maria Helena intuiu muito cedo o que se passava nas escolas portuguesas, que de espaços monolingues passaram a ser lugar de uma diversidade linguística imensa e desconhecida. Com o apoio da Gulbenkian, desenvolveram-se projectos para caracterização desta diversidade, produziram-se materiais de apoio aos professores, ensaiaram-se métodos de ensino em turmas bilingues. E lá estava a Maria Helena, sempre à frente, rodeando-se de quem lhe parecia poder contribuir (obrigada, Maria Helena, por me querer junto de si), mas realisticamente chamando especialistas “de fora” para reflectirmos com quem já há muito enfrentava situações similares. Nada feito em cima do joelho.
Ciência, partilha, aplicação, com equipas entusiasmadas onde o sedimento da amizade foi sempre visível à volta da mesa de reuniões do ILTEC, ou à volta da sua mesa na Duque d’Ávila, onde a partilha de conhecimento continuava a par da partilha de comidas e copos, onde, com ela, fazíamos escapadas ao seu extraordinário terraço para, na Primavera, nos deslumbrarmos com o lilás dos jacarandás e, na festa sempre animada do Natal, nos encantarmos com as luzes a cintilar por entre as ramagens despidas dos jacarandás.
A Maria Helena será sempre nas nossas vidas uma luz que nos vai continuar a ensinar, que nas memórias deixadas nos continuará a divertir. Pela lembrança da força que sempre a animou, dar-nos-á força para enfrentarmos os piores demónios, como aquele
que agora nos ataca.
As memórias que tenho da Maria Helena apaziguam-me. Continua a fazer-me bem.
Madalena Colaço
Não acredito que haja muita gente que se tenha cruzado com a Maria Helena, na vida pessoal ou na vida profissional, sem que esse encontro tenha deixado marcas.
A Maria Helena foi minha professora de Fonética e Morfologia do Português nos anos 80. Na verdade, tive apenas algumas aulas com ela, uma vez que as aulas eram partilhadas com outra docente. Adorei a disciplina, como adorava tudo o que era Linguística durante o meu curso, mas não foi isso o que me marcou mais. Eu era muito jovem e não avaliava, nessa altura, o privilégio de ter a Maria Helena como professora.
Desde aí, estive com a Maria Helena diversas vezes e em várias situações. Primeiro, no ILTEC, no projeto EUROTRA, depois na FLUL. De cada vez que a ouvia falar, ficava a admirá-la mais. Era uma mulher segura, de convicções fortes, que expunha as suas ideias com frontalidade. Mas sempre com um sorriso… O sorriso da Maria Helena, a sua gentileza, o carinho e a atenção que dedicava aos outros são recordações preciosas que ficarão na minha memória, a par de tudo o que já foi tão bem dito.
Recordo com um sorriso uma das últimas vezes em que estive com a Maria Helena. Eu tinha tido uma experiência, digamos, menos feliz com a pintura do meu cabelo. A Maria Helena fez questão de me vir dizer “Olha que eu gosto de te ver assim! Ficas bem!”. E disse-o a várias pessoas que ali estavam. Sei que é uma coisa sem importância nenhuma, mas fiquei mais feliz, e penso que isto mostra aquele carinho tão típico da Maria Helena.
Obrigada, Maria Helena.
Dulce Pereira
Todos somos estrelas de brilho ímpar, dizia Agostinho da Silva.
Assim a Maria Helena, mais do que todos.
À sombra da sua luz nasceram e gravitaram ideias, instituições, obras, pessoas - amigos -, mundos possíveis. Gravita ela, agora, diversa e una, em cada um de nós.
Palmira Marrafa
Dizer da Maria Helena é dizer do ver muito mais além, da tenacidade em abrir caminhos, da coragem e da força nos escolhos. Dizer da Maria Helena é dizer do seu sorriso luminoso. Dizer da Maria Helena é dizer da Liberdade estampada nos seus olhos.
Anabela Gonçalves
A primeira vez em que ouvi falar da Maria Helena… foi há muito tempo. Não fui formalmente aluna dela, mas era incontornável não falar do seu trabalho nas aulas de Fonética e Morfologia do Português (ano 1984-1985). Durante algum tempo, a Maria Helena foi “só” a autora de um dos livros que tive de ler e reler, até porque, no ano seguinte, me foi apresentada a Sintaxe e, a partir daí, a Fonologia só pontualmente apareceria na minha vida.
Em 1988, já licenciada, fui convidada a integrar o projeto Eurotra, de que a Maria Helena era coordenadora. E aí a Maria Helena deixou de ser “só” a autora de um livro que tive de ler e reler, e passou a ser presença diária na minha vida. Devagarinho, fui conhecendo a Maria Helena: do seu amor pela Ciência, que ia muito além da Fonologia, e do seu amor pelos outros e pela vida. Tive-a comigo em muitos momentos de pura boa disposição (por exemplo, na Direção da APL; como nos divertíamos com ela!); mas também a tive comigo em momentos menos fáceis, em que o seu sorriso e as suas sábias palavras tão bem me aconchegaram.
Hoje, como nesses momentos, são estas as palavras que consigo articular: obrigada, Maria Helena!
João Costa
A linguística de luto
Há tanto para dizer e contar sobre a sua carreira, sobre como trouxe a linguística generativa para Portugal, como foi visionária na linguística computacional, como se preocupou antes dos outros com a variedade linguística nas escolas.
Há pouco tempo almoçamos juntos porque ela queria que eu dissesse o que ainda podia fazer pelas escolas.
Mas só me apetece dizer que somos muitos que perdemos a nossa professora, um sorriso lindo, uma amizade sempre divertida, um exemplo de força e resiliência.
Viveu pelos sons e pelas palavras. Fez-nos maiores. Em cada aluno, formou um amigo.
Os nossos telefonemas que começavam com “Joãozinho” e “minha querida” ficam gravados na minha história.
Obrigado, querida Maria Helena.
João Veloso
Évora, 2017. Estava calor, a festa era da linguística, havia vida e havia alegria. Hoje morreu uma das maiores linguistas portuguesas de sempre, a quem a minha e outras gerações de linguistas portugueses e não só deve tanto, tanto, tanto. A Professora Maria Helena Mateus não era só uma brilhante linguista. Era uma pessoa magnética, com um encanto e uma generosidade irresistíveis, um transbordante gosto pela vida, uma inteligência viva, uma cultura sem fim, um humor de que nunca desistiu mesmo depois de muitos desgostos que teve, uma capacidade de sedução e de contar histórias como raras pessoas são capazes de ter. Com ela, começávamos a falar de fonologia e acabávamos a trocar segredos sobre livros, filmes, viagens, músicas. Já quase não há académicos assim. Conheço muitas pessoas que acabaram por se tornar linguistas por terem sido tocadas, nas aulas da Professora Maria Helena Mateus, pela sua humanidade que não se estragou pela inteligência brilhante. Ela e as equipas que sempre dirigiu com jovialidade e competência deixam-nos algumas das mais importantes obras e recursos para o estudo do português. A linguística teórica em Portugal não seria o que é se não tivéssemos tido a grande sorte de ter tido a Professora Helena Mateus entre nós. A Associação Portuguesa de Linguística não seria o que é se não tivesse sido embalada no berço por esta mãe carinhosa. De muitos assuntos, como a importância social da linguística, o tratamento automático dos dados linguísticos, a interface entre a fonética, a fonologia e a morfologia ou o estudo comparado das variedades do português, não se falaria hoje como se fala se não tivéssemos sido acordados para eles por Helena Mateus. Nunca fui, formalmente, seu aluno. Conheci-a relativamente tarde na minha vida. No início da minha carreira, a minha timidez e a minha pequenez faziam-me corar e gaguejar quando nos falávamos. Com o tempo, foi-se criando uma cumplicidade muito franca e muito querida entre nós. Ela gostava de mim, eu gostava muito dela. Tive a honra de a ter no meu júri de agregação. Estavam lá os maiores e as palavras que trocámos nesses dias, e em muitos outros dias, sempre me deram um alento e uma confiança que muito me ampararam em certos momentos. Tenho amigas preciosas que a esta hora se sentem órfãs. Não vou aqui nomeá-las por pudor, mas já lhes mandei o abraço que estes tempos feios nos permitem. Não poderemos estar juntos no funeral. Seremos sempre fiéis à memória e ao exemplo da Professora Helena Mateus. A primavera este ano chega mesmo mais tarde. Estou triste.
Inês Sim-Sim
Na memória colectiva, que será eterna enquanto cada um viver, a Maria Helena permanecerá igual a si própria, consciente de que tinha o dom de abrir portas e cuidar dos que por elas passavam.
Lourenço Chacon
Conheci a Maria Helena em 2012, pouco depois de ela ter completado 81 anos. Foi em Lisboa, onde vivi no restante desse ano e em parte de 2013. Realmente vivi em Lisboa – e parte enorme e particularmente significativa dessa vida se deve à pessoa extraordinária que é (porque sempre esteve, e está, muito viva em minha memória) a Maria Helena.
Nessa temporada, morei em um anexo ao seu apartamento, fato que nos aproximou bastante. Sabedor (por um amigo brasileiro que já a conhecia bem) do tanto que ela gostava do Brasil e da cultura brasileira, levei-lhe DVDs de séries, CDs de nossos artistas contemporâneos (particularmente agradou-lhe Mônica Salmaso) e livros de nossos autores. Talvez porque os presentes também digam muito da gente mesmo, esses presentes podem ter significado, para ela, um modo de me introduzir a Lisboa: shows musicais, peças teatrais, cinemas, livrarias... Não foi a Linguística (nem mesmo a Fonologia) que estabeleceu nossa conexão.
Com a convivência cotidiana, outros universos da Maria Helena foram se abrindo para mim: seus gatos, sua família, seus amigos, lugares baratos de compras na região da Praça Martim Moniz... universos que me foram apresentados com incrível naturalidade. Só bem depois de me introduzir à (sua) vida é que os assuntos científicos também passaram a fazer parte do nosso cotidiano. E, aí, tive a singular oportunidade de entender, a partir desse seu universo pessoal, a grandeza científica da Maria Helena, sobretudo a grandeza de um conhecimento que se criou e se alimentou pela vida em seu sentido amplo.
Acabo de perceber que várias vezes me veio, na escrita deste pequeno texto, a palavra vida (e seus correlatos). Talvez pelo estranho momento mundial que estamos vivendo; talvez porque a vida se torne a questão que mais e melhor emerge quando a morte (no plano privado, como a da Maria Helena, ou no plano macro, como o da pandemia que nos assola) nos confronta.
De qualquer modo, vida é o que a Maria Helena representa pra mim. E com vida é o modo como pretendo conservá-la em minhas memórias e em minhas lembranças.
Direção da Associação de Professores de Português
Caro(a)s colegas:
Foi com grande pesar que recebemos na Associação de Professores de Português a notícia do falecimento da Professora Doutora Maria Helena Mira Mateus, uma referência única para nós, na qualidade de fundadora e primeira presidente da APP. A sua perda marca um tempo na história da associação. O nosso diálogo com ela continua através das suas palavras, da sua obra de linguista e de gramática e da história da APP.
Linguista, professora catedrática jubilada na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL) e antiga vice-reitora da Universidade de Lisboa (UL), a Professora Helena Mateus distinguiu-se não só pela produção científica, mas igualmente pela capacidade de dinamizar equipas de trabalho e de entusiasmar estudantes e investigadores mais novos.
Fundou e foi presidente da Direção da Associação Portuguesa de Linguística (1984 a 1986 e 2000 a 2004); está na origem da criação do grupo português do Projeto de Tradução Automática da CEE, EUROTRA, que determinou o início de projetos de processamento informático da língua portuguesa; fundou e foi presidente da Direção do Instituto de Linguística Teórica e Computacional (1989 a 2012), onde nasceu o Portal da Língua Portuguesa, em livre acesso e em constante desenvolvimento, tendo como recurso central o Vocabulário Ortográfico do Português (VOP).
Dirigiu a Revista Internacional de Língua Portuguesa desde o n.º 1 (1989) ao n.º 17 (1997) e são da sua autoria as palavras que abrem o Editorial do primeiro número:
«O primeiro número de uma revista é sempre um risco, um sofrimento e um prazer. Os que embarcaram alguma vez nesta aventura podem saborear a alegria com que apresentamos, hoje, a Revista Internacional de Língua Portuguesa. Esses saberão como é grande a nossa expectativa em relação aos números que se vão seguir, e como contamos com a colaboração dos que nos lêem, dos que acreditam na razão da existência desta publicação.» (RILP, n.º 1, p. 5)
Foi autora de vastíssima bibliografia sobre linguística geral, política de língua, teoria da gramática generativa e, principalmente, sobre a fonologia e a prosódia da língua portuguesa.
A Gramática da Língua Portuguesa[i] foi a obra em que participou de que ficarão testemunhos mais duradouros, tendo em conta as suas várias edições revistas e aumentadas. Em Uma vida cheia de palavras[ii] recorda as decisões tomadas na 6.ª edição da gramática, então com 1127 páginas, no ano de 2003:
«[…] decidimos preparar a nova edição com “com maior pendor descritivo, com um estilo menos tecnicista e com uma cobertura linguística mais ampla”. Nesse ano a Gramática tinha nove autoras e os amigos conheciam-na por “a gramática das mulheres.”» (Mateus, 2018:231)
Maria Helena M. Mateus esteve na origem da criação da Associação de Professores de Português, em dezembro de 1977, tendo sido a sua primeira presidente, de 1978 a 1981. A fundação da associação está fortemente ligada à sua valorização da função social das Faculdades de Letras na formação de professores e ao significado que dava ao que é ser “professor de língua materna.”
Nas suas palavras:
“[…] o trabalho do professor de língua materna não é apenas uma forma de receber um salário mas um modo aprendido de estar com os outros, de lhes transmitir o nosso conhecimento da vida das palavras, e de nós próprios no interior dessa vida” (Mateus, 2018:207).
Na secção “Nas palavras dos sócios da APP”, integrada no Noticiário do passado dia 24 de março, referimo-nos no presente do indicativo a esta mesma passagem do texto. A alteração do tempo verbal refletiu, subitamente, o silêncio, agora sem fim, da primeira presidente da direção.
Nos 42 anos de vida da APP, Helena M. Mateus esteve sempre presente no incentivo dado ao trabalho da associação. Fez parte do conselho de leitura da revista Palavras, participou em entrevistas para a revista e foi o rosto da capa do Número 20, publicado no outono de 2001. Dinamizou projetos, participou em encontros, jornadas, ações de formação e em diversas atividades, tendo-lhe sido atribuído o estatuto de sócia honorária.
Em diversos momentos, a professora Maria Helena animou as iniciativas da APP; destacamos uma participação no Projeto Ler consigo, quando, pela sua voz, duas turmas de 6.º ano de uma escola de Lisboa escutaram a história “Uma galinha”, de Clarice Lispector, a que se seguiram dois contos de Miguel Torga, “Sei um ninho”, e “Vicente”. E não está longe o ano de 2017, aquando do 12.º Encontro Nacional da Associação de Professores de Português (12.º ENAPP), em que comemorou connosco o 40.º aniversário da APP, percorrendo histórias e memórias de colegas que, nos primeiros tempos da associação, integraram com ela os corpos sociais.
Quer como alunos, quer como colegas, quer como amigos, muitos de nós, na APP, tivemos o privilégio de conviver e aprender com a Professora Maria Helena Mira
Mateus. Teve uma vida longa, morreu com 88 anos e uma carreira bonita. A nossa gratidão evoca-a, hoje, juntando-nos num solidário abraço, no desejo de que a APP continue a manter vivo o brilho do seu pensamento e do seu entusiasmo no estudo e no ensino da língua portuguesa.
A direção da APP
Cristina Martins
A Maria Helena tratava-me por Cristininha, o que me enternecia. Não fui aluna da Maria Helena e privei pouco com ela, mas sempre que nos cruzávamos nas lides profissionais, contava-me histórias fantásticas, com cumplicidade, segurava-me a mão e fazia-me rir. Exercia a franqueza com um sorriso luminoso, cheia de graciosidade, uma das suas lições perenes. Teve uma vida à qual não faltou nada, porque viveu de tudo, muito de tudo, arrojada e intensamente. A Maria Helena foi, mas fica.
Em horas inda louras lindas
Ana Maria Martins
01.04.2020
Não sou fonóloga e na licenciatura em Filologia Românica (1976-1981) não existia uma cadeira obrigatória de fonologia. Mas a linguística fascinou-me logo no primeiro ano da licenciatura, onde tinha chegado levada pela literatura. Para mim, que no liceu detestava gramática, a linguística foi uma inesperada e feliz novidade. Por isso, no segundo ano da licenciatura, juntamente com outras poucas aves raras, escolhi Fonologia como cadeira de opção. Esse foi o meu primeiro encontro com a Maria Helena. E veio-me agora à memória que para avaliação na cadeira de Fonologia fiz uma análise fono-estilística (ao estilo da escola de Praga) de um poema de Fernando Pessoa com encanto sonoro bastante para embalar memórias boas e deixar aqui um sorriso (que não tem de ser triste) para a Maria Helena. Até ao nosso próximo jantar de sushi!
Em horas inda louras, lindas
Clorindas e Belindas, brandas
Brincam no tempo das berlindas,
As vindas vendo das varandas.
De onde ouvem vir a rir as vindas
Fitam a fio as frias bandas.
Mas em torno á tarde se entorna
A atordoar o ar que arde
Que a eterna tarde já não torna !
E em tom de atoarda todo o alarde
Do adornado ardor transtorna
No ar de torpôr da tarda tarde.
E ha nevoentos desencantos
Dos encantos dos pensamentos
Nos santos lentos dos recantos
Dos bentos cantos dos conventos…
Prantos de intentos, lentos, tantos
Que encantam os attentos ventos.
Fernando Pessoa, Saudade dada, Portugal Futurista, 1917. [Ortografia do original]
Para a Maria Helena
Conheci a Maria Helena no começo do ano letivo de 1969-70, depois de ter frequentado o 1º ano na Universidade de Coimbra. No 1º ano eu tinha descoberto a reflexão sobre a linguagem através da leitura da Teoria da Linguagem, de Herculano de Carvalho. Mas foi verdadeiramente com a Maria Helena que descobri a Linguística Portuguesa. Como já escrevi a duas mãos com a Gabriela Matos, foi a Maria Helena quem primeiro nos falou de ambiguidade estrutural, com alguns famosos exemplos invocados por Chomsky, e a ideia de que as frases têm afinal estrutura teve um efeito tão forte que nos marcou para sempre. Foi graças a ela, ao Eduardo Paiva Raposo e ao José António Meireles que fiz parte do Grupo de Linguística Teórica que funcionava no Centro de Estudos Filológicos, no velho edifício da Avenida 5 de outubro, em Lisboa, e onde fiz decisivamente a minha escolha pela Linguística.
A minha relação com a Maria Helena fortaleceu-se quando ela me convidou a participar na elaboração da Gramática da Língua Portuguesa, nos anos de 1981 e 1982. Eu era a única do Porto, nessa altura não havia nem internet, nem Skype, nem emails. Uma vez por mês reuníamo-nos ou na casa da Inês Duarte, que entretanto tinha sido mãe, ou na casa da Maria Helena (penso que, no princípio, ainda na Avenida de Roma e depois no seu andar da Avenida Duque d’Ávila). Essa casa é e sempre foi um espaço muito acolhedor, bem decorado, com objetos trazidos de várias partes do mundo, em especial do Brasil, para onde viajava frequentemente. Era comum encontrarmos amigos brasileiros e várias vezes se improvisava uma refeição, um chá com bolinhos. Refiro a sua casa, pois penso que para todos os que a conhecemos e amámos, esse lugar era uma espécie de porto de abrigo, de lugar privilegiado para conversas animadas, sobre a família, sobre linguística, sobre política, sobre música ou cinema. A Maria Helena era extremamente culta, lia e estudava muito, tinha amigos escritores, jornalistas, pintores, políticos e a sua casa era, a todos os títulos, um espelho da sua elegância, do seu bom gosto, da sua beleza interior e exterior.
Veio a 2ª edição da Gramática em 1989 e a 5ª em 2003. E foi sempre um gosto trabalharmos juntas, sempre com o seu entusiasmo, sempre com uma qualidade única de ser pioneira, de coordenar equipas, de puxar todos para a frente, o que fez com que ela fosse a primeira presidente da Associação Portuguesa de Linguística, a primeira Presidente da Associação de Professores de Português, a primeira de tantos e tantos projetos, que nos últimos dias têm sido justamente referidos. O seu lugar na Linguística Portuguesa foi já bem explicitado em vários depoimentos e não é esse neste momento o meu intuito.
Sinto nesta hora uma tristeza enorme por a ver partir, mas ao mesmo tempo sinto um grande privilégio por ter sido sua amiga durante 50 anos e por nunca a nossa amizade ter esmorecido. A distância não nos separou e visitei-a ao longo destes anos, mesmo nos momentos difíceis da sua vida (e não foram poucos)! Conversámos por telefone ainda no dia 20 de março, nesse mês que marcou indelevelmente as nossa vidas, por tudo o que vimos acontecer, por tudo o que perdemos…. Marcámos um encontro para Lisboa, um dia! Não a irei visitar, Maria Helena, mas guardá-la-ei para sempre no meu coração.
Ana Maria Brito
1 de Abril de 2020
Direção da Associação Portuguesa de Linguística
Caras Associadas e Caros Associados,
É com profunda tristeza e pesar que a Associação Portuguesa de Linguística comunica o falecimento da Professora Maria Helena Mira Mateus no passado dia 30 de março em Lisboa.
Professora Catedrática Jubilada da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, desempenhou vários cargos académicos na Faculdade de Letras e na Universidade de Lisboa, nomeadamente o cargo de Vice-Reitora, de 1986 a 1989.
Membro da Associação Portuguesa de Linguística desde o momento da sua fundação, contribuiu de forma inestimável para o crescimento e para a consolidação desta associação científica, na qual exerceu o cargo de Presidente de 1984 a 1986 e de 2000 a 2004.
A Professora Maria Helena Mateus teve um papel absolutamente crucial nos estudos de Linguística em Portugal, tendo contribuído, de forma inequívoca, para o desenvolvimento da investigação teórica em gramática generativa em várias gerações de linguistas portugueses.
A qualidade da sua extensa carreira académica foi reconhecida nacional e internacionalmente, tendo sido presença frequente, como convidada, em várias academias internacionais. Merece especial destaque a sua relação de amor com o Brasil e o seu grande carinho pelos linguistas brasileiros, manifestada na nota de pesar da ABRALIN.
Analisar, refletir e discutir fonologia do português era uma paixão que transbordava para os seus alunos e para os seus pares. As suas preocupações com a política da língua ficaram bem espelhadas nas várias conferências que deu e nos textos que escreveu sobre o assunto. O fascínio que sempre teve pela inovação impeliu-a para projetos tão ambiciosos como foi o EUROTRA ou, mais tarde, a fundação do Instituto de Linguística Teórica e Computacional, a que presidiu de 1989 a 2012. As suas preocupações com o ensino da língua portuguesa foram constantes em toda a sua carreira desde a fundação da Associação de Professores de Português, que dirigiu de 1978 a 1984, até ao projeto sobre a importância do ensino de português língua não materna tendo em consideração a diversidade linguística existente na escola portuguesa, já no final da sua atividade profissional.
Em 2016, por iniciativa de um conjunto de sócias e de sócios da APL, foi proposta e aprovada, por unanimidade, na Assembleia Geral da associação a alteração da designação do Prémio de Investigação APL para Prémio de Investigação APL/Maria Helena Mira Mateus, como reconhecimento pela sua dedicação à Linguística em Portugal e à APL em particular. No ano seguinte, tivemos o privilégio único de levar a Professora Maria Helena ao Encontro Nacional da Associação Portuguesa de Linguística, na Universidade de Évora, para que entregasse pessoalmente o primeiro prémio com o seu nome. Foi um momento memorável, de grande emoção, partilhada por todos os presentes naquela Assembleia Geral.
Linguista inquieta, de espírito curioso e inquisidor, de comunicação envolvente e sedutora, de uma energia transbordante e inesgotável, resiliente na vida, culta, apaixonada por livros, filmes e boas conversas, construiu a sua carreira sempre com a inovação e o futuro no horizonte.
Foi uma mulher de fortes convicções e grande empenhamento cívico, uma professora, uma mestre para sucessivas gerações de estudantes, para muitos professores e para muito dos que com frequência consultamos a sua obra, nomeadamente a Gramática da Língua Portuguesa, que coordenou, e The Phonology of Portuguese, de que foi coautora.
Nos tempos exigentes que estamos a viver, pesa-nos a impossibilidade de podemos prestar o nosso último tributo de homenagem, a tristeza de não nos despedirmos com olhares cúmplices, com abraços sentidos, com partilhas amigas, com testemunhos verdadeiros, à semelhança do muito que, na expressão dos afetos, aprendemos com a Maria Helena.
Embora a tristeza e a dor da sua partida nos dominem, cremos que o melhor contributo para honrar a sua memória é o compromisso que prosseguiremos, inspiradas no seu entusiasmo, na sua alegria, na sua competência, na sua total entrega, com a nossa dedicação em prol da Linguística Portuguesa, agradecendo penhoradamente todo o seu legado à comunidade de linguistas em Portugal.
A Direção da Associação Portuguesa de Linguística
31.03.2020
Guilhermina Jorge
Querida Maria Helena
Diáfana e ondulante
Na humildade sincera
Secreta e autêntica
Ouvia-a no final dos anos 80 no corredor da Linguística
Um sorriso amigo
Uma inteligência ímpar
Um gesto carinhoso
Ouvia-a, mais tarde, nos espaços do ILTEC
Memórias afáveis e sorridentes
Das festas natalícias em casa da Maria Helena
E do orgulho que eu sinto em fazer parte desses encontros espontâneos
2 de abril 2020
Isabel Pereira
2 de abril de 2020, 19 horas
É o momento de me juntar a muita gente que, recolhida em casa, se despede da Maria Helena. Cada um terá encontrado uma forma diferente de o fazer. Eu procuro pela casa provas físicas da nossa relação (de professora-aluna, de orientadora-orientanda, de amiga) de mais de 30 anos: fotos, cartas (há 30 anos escreviam-se cartas), manuscritos comentados de partes de teses, que continuo a guardar.
O meu primeiro encontro com a Maria Helena (já lhe conhecia nome e obra) ocorreu na entrevista para admissão no mestrado, em finais de setembro de 1986. Tornei-me, desde aí e para sempre, sua discípula. Tive vários outros professores que foram importantes na minha formação (na verdade, mais professoras), mas a mais nenhum atribuo o estatuto de Mestre. Escolhi-a como orientadora dos meus trabalhos académicos, mas a Maria Helena foi muito mais do que isso, porque não era capaz de ser só isso. Ela dava-se às pessoas e a mim deu-me orientação científica e discussões por vezes exaltadas, alguns puxões de orelhas (reconheço que merecidos), conselhos (mas sem condescendência), conversas sobre os mais diversos assuntos e uma imensa amizade.
Devo-lhe muito. Vai fazer-me muita falta.
Carmen Matzenauer
Este tempo de sentir um pesar imenso pela perda da Profa. Maria Helena Mira Mateus também é o tempo de expressar o agradecimento pela contribuição ímpar que a exemplar investigadora e professora ofereceu para os estudos sobre o Português. Com o seu profundo conhecimento sobre a língua e sobre teoria fonológica, conquistou, com justiça, destacado lugar no cenário acadêmico internacional e, de forma particular, no cenário brasileiro; com a sua admirável personalidade, pela força, a disposição e a alegria contagiantes, conquistou um espaço privilegiado no respeito e na admiração de colegas e alunos portugueses e brasileiros. As investigações da Profa. Maria Helena subsidiaram sempre o caminho para a solução de questões postas por fonólogos brasileiros. O vínculo entre o Brasil e Portugal foi estreitado pelo amor da Profa. Maria Helena pela Ciência Linguística e por este país de além-mar. Causa admiração enorme a vida “cheia de palavras”, repleta de grandes e importantes realizações vivida pela Profa. Maria Helena Mira Mateus. A lembrança da sua generosidade, simplicidade, sabedoria e do seu genuíno sorriso sensibiliza-me profundamente.
José Pinto de Lima
A Maria Helena era uma pessoa
Na sexta-feira, a Alcinda, do Departamento de Estudos Anglísticos, visivelmente consternada, deu-me a notícia triste da morte da Maria Helena Mateus.
Wittgenstein - quando queria falar de alguém que era bom e que tinha em boa conta – dizia que ‘era uma pessoa’, sem mais qualificação. Ora, a Maria Helena Mateus era uma pessoa. Sempre me apoiou ao longo do meu percurso, embora ela fosse do Departamento de Linguística Românica e eu do Departamento de Estudos Germanísticos. Quando, em 1977, comecei a leccionar na FLUL, a Maria Helena reuniu os assistentes de Introdução à Linguística, entre os quais me encontrava, e elaborámos uma antologia de textos. Ela não se esquecia de ninguém. Gostava de ajudar os que estavam em início de carreira. Gostava de conversar e lembro-me de um jantar, ou reunião, em sua casa, em que esteve o saudoso Celso Cunha. Para o meu processo de doutoramento, ela também foi importante. Nessa altura, eu estava interessado na filosofia analítica e tinha escrito um artigo sobre o texto de Saul Kripke, Naming and Necessity. Pedi-lhe a sua opinião e, passados uns dias, a Maria Helena tinha lido o artigo e confessou que não estava bem dentro do assunto (o que era verdade, mas a culpa tinha sido minha, porque não tinha sido previsto). Apesar disso, a Maria Helena falou comigo sobre o texto, o que para ela deve ter sido um esforço sério. Era assim a Maria Helena: sempre disposta a ajudar. Organizou (com a Alina Vilalva) uma série de livros de linguística, para a qual me convidou. Em 2014, tive o prazer de ir a sua casa, oferecer-lhe o meu livro sobre gramaticalização e lexicalização. Nos últimos anos não tinha estado em contacto com ela e tencionava falar-lhe, mas foi tarde demais.
Em meu nome e da Alcinda, quero dizer, com Vinicius de Moraes, de quem ela tanto
gostava: ‘Tua bênção, Maria Helena!’
Maria Antónia Mota
Numa época de passagem, de muitas aprendizagens e de novos entusiasmos, chegaram ao nosso curso de Filologia Românica (1970/71-1975/76) novíssimas ideias e teorias, pela mão de professores como a Maria Helena, que, enquanto ainda terminava a sua tese de Doutoramento, nos iniciou à fonologia generativa. São muitas as memórias, muitas delas engraçadas, dessas aulas. Outras memórias se foram acrescentando, das lides académicas. Mas é, sobretudo, a sua faceta de cultivo atento das amizades, de curiosidade por tantas e variadas coisas e de serenidade face às voltas da vida que, neste momento, tenho vontade de lembrar. Dez dias antes de sair silenciosamente de cena, a Maria Helena, sempre resistente, sossegava os amigos dizendo-se cheia de livros e de filmes interessantes para ocupar estes tempos de adversidade. Uma memória sorridente é o que quero agora deixar-lhe.
Gabriela Matos
A Maria Helena teve grande influência no meu despertar para a Linguística e nas escolhas que científicas que fiz neste domínio, desde os primeiros anos da Faculdade. A ela devo ter participado em vários projetos de investigação desafiantes e muito gratificantes do ponto de vista do conhecimento adquirido.
Neste momento quero prestar-lhe, mais uma vez, a minha homenagem e expressar a minha gratidão por tudo o que fez pela Linguística em Portugal!
Moisés Correia Pampim Silva
Qualquer linguista que se preze conhece e/ou já ouviu falar em Maria Helena Mira Mateus. Na sua grande maioria, conhece a Mª Helena das obras: dos livros e dos manuais técnicos, das gramáticas e dos artigos científicos que ela, como ninguém, escrevia com grande solenidade. Não tenho dúvidas de que quem pôde e conseguiu privar com ela, por mais efémero que esse momento possa ter sido, ficou marcado indelevelmente pela pessoa e linguista que Mª Helena foi e ainda é. Muitos são os testemunhos que comprovam essas experiências interpessoais e todos, direta ou indiretamente, remetem para um traço simples que Mª Helena comportava: a sua jovialidade, o seu trato, o seu sorriso e a sua colossal competência linguística. No entanto, muitos não puderam ou não conseguiram privar com ela, conhecendo-a única e exclusivamente pelo trabalho que desenvolveu na linguística maioritariamente desde os finais dos anos 60 do século passado. A grande Mª Helena dos livros. A grande Mª Helena de Portugal.
Pessoalmente, não tive o gosto nem o prazer de ser aluno dela. Todavia, tenho sempre o maior deleite em lê-la. A Mª Helena da linguística. Foram três os momentos fulcrais e cruciais em que me cruzei com ela e que demonstrei, mesmo que por fugazes instantes, a admiração e respeito que tive, que tenho e que sempre terei pela linguista que ela foi e ainda é.
O primeiro desses momentos aconteceu no ano de 2017, no Centro Cultural de Belém, aquando do lançamento do seu livro de memórias. Não estava sozinho, acompanhavam-me dois amigos. Naquele espaço, pude igualmente encontrar caras conhecidas de docentes da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL) e outros linguistas que lia (e ainda leio) e estudava (e ainda estudo) nos livros, nos manuais técnicos e especializados, nas gramáticas e nos artigos científicos que correm o território nacional e o mundo. Lembro-me, sim, da sua jovialidade, do sorriso e da forma como respondia, às perguntas que lhe eram colocadas, de forma simples, cordial, objetiva, entusiasta e divertida. Penso que essa sessão de lançamento acabou algures com uma fotografia de ambos que se perdeu no tempo e nas vontades e cuja existência e paradeiro ainda se desconhece.
O segundo encontro com Mira Mateus foi na comemoração dos 30 anos da abertura oficial do curso de licenciatura em linguística na FLUL, um dia especial para todos. Bonita como sempre, sorridente, bem-disposta, pronta para o divertimento e para os bons momentos. Esse dia quente e colorido de junho de 2018 serviu como um ótimo encerramento do (meu) ano letivo. Mateus fez as honras de partir o bolo comemorativo como grande entusiasta que foi e que ainda é. Foi o ano em que eu terminei o curso de licenciatura em ciências da linguagem na mesma faculdade que o viu nascer.
O terceiro e último momento de contacto com Mª Helena aconteceu uns meses depois, em meados de novembro de 2018, numa tarde de uma quinta-feira de inverno chuvoso e platinado. Mateus, reformada há já quase duas décadas, decidiu doar parte do seu, digamos, espólio pessoal livresco à biblioteca da FLUL. Contudo, apesar de essa doação ter sido aceite com muito bom grado pela mesma entidade, a biblioteca da FLUL já não tinha praticamente espaço para albergar mais livros, principalmente porque muitos deles se encontravam repetidos nas suas prateleiras.
Foi com surpresa, orgulho, modéstia e algum deleite que recebi a notícia de que iria receber os livros doados por Mira Mateus à biblioteca «fluliana», pois o diretor da mesma decidiu doá-los ao melhor aluno que se graduou em 2018 no curso de linguística da licenciatura. Foi um ano académico feliz e preenchido, como todos os outros que frequentei no curso e também, posteriormente, no mestrado na mesma área.
Nessa tarde invernosa corolada com nuvens de um cinza misterioso, suspeito e aguado, encontrei Mª Helena na simples, simpática e simbólica cerimónia de doação das suas obras, no rés-do-chão do edifício bibliotecário formatado para o efeito. A sua gentileza era magnânima. Burocracias à parte, passado alguns meses, já num novo ano, pude escolher devidamente as obras que queria trazer para casa, as obras que queria para mim. Trouxe mais de 80% dos livros que Mª Helena doou, deixando poucos para outros sortudos e curiosos. Quando os escolhi, não pensei só em mim. Pensei nos meus colegas e amigos académicos e trouxe, juntamente com os demais, um livro para cada um. Entreguei-os no próprio dia e, de resto, vim carregado para casa com um saco cheio de livros com história e pó dourado. Uns li, outros deixei repousar na sua eterna sabedoria. Ali estão, no canto do meu quarto, no mesmo saco, à espera de encontrarem uma estante ou prateleira que os albergue e dignifique. Farei isso um dia, quando começar a construir a minha biblioteca pessoal. Até lá e por agora, namoro com eles paulatinamente, como faço com todos os livros que possuo.
A produção linguística de Mira Mateus foi incomensurável, indubitável e incontrovertível, mas a notícia da morte chegou e com ela também chegaram as memórias dos bons momentos de todos que com ela, mais uma vez, tiveram a oportunidade de privar. A linguística é uma ciência ímpar, dizia ela numa entrevista algures em 2003, já jubilada, pois é a única ciência que se utiliza a si própria para se estudar e se conhecer. Pois é Maria Helena, utilizamos palavras, mas essas estão velhas e gastas e para a morte há pouco léxico que chegue; tudo sabe a pouco e aquilo que sabe a muito parece um insolúvel, injusto, ingénuo e misericordioso exagero. As palavras não dizem tudo. Nesse dia de março, o dia da notícia do falecimento, e pela enésima vez, olhei de relance e compassadamente para os livros que lhe pertenceram, alguns com 50 anos de existência, e senti-me indefinivelmente macambúzio e sorumbático.
Por fim, jamais esquecerei a voz de Mª Helena, o seu tom jocoso e a forma como falava, que, à semelhança dos livros (quaisquer que eles sejam), aquecerá sempre o meu coração e a alma de qualquer linguista. Deixou-nos a todos um verdadeiro legado. Talvez essa seja a única forma de colmatar e apaziguar a saudade que muitos sentem por ela.
Por agora, fico com os livros, que ainda leio e com os quais ainda namoro.
Testemunhos de membros da equipa da elingUP em relação à entrevista que realizaram à Professora Maria Helena Mira Mateus
Violeta Magalhães
É com uma enorme sorte e privilégio que posso descrever o facto de ter conhecido a Professora Maria Helena e o seu trabalho. Estudar Linguística pelas suas palavras foi e continua a ser uma desafiadora aprendizagem. Sinto-me também muito agradecida por, juntamente com outros colegas, ter tido a oportunidade de elaborar uma entrevista à Professora e conduzi-la presencialmente num momento que certamente ficará para sempre nas nossas memórias. E o quanto ela não prezava as (suas) memórias. E o quanto a memória não é afinal algo do mais precioso que temos. Para a Linguística e para a vida em geral.
Carlos Silva
Uma vida cheia...
Para quem se dedica às Letras, o nome Maria Helena Mateus não demora muito a saltar dos livros pela ponta dos dedos, a correr pelos ouvidos e a instalar-se na memória.
Para quem conheceu pessoalmente a Professora Maria Helena Mateus, não é apenas um nome que se grava na memória, mas, inevitavelmente, uma memória que se aloja no coração. Desde 2015, quando entrei para a Universidade, seu nome ecoava nas aulas de Introdução à Linguística e de Fonologia, mas, junho de 2017, por ocasião do Colóquio de Homenagem a Óscar Lopes, tive a honra de entrevistar a Professora Maria Helena Mateus. Foi uma conversa simples, profunda, humana, em que se falou da Linguística Formal, às vivências quotidianas, filhos e netos. Pelo corredor, falámos de vários interesses, antigos e recentes e, depois disso, ainda trocámos vários e-mails amigos, dos quais ela se despedia sempre com "Um grande abraço da Maria Helena".
"Uma vida cheia de palavras" foi o título que a Professora Maria Helena Mateus deu às suas próprias memórias. No entanto, para quem a conheceu, mesmo que brevemente, sabe que a sua vida e a sua memória foi e é muito mais do que as palavras alguma vez poderão descrever...
Mariana Ribeiro
É inevitável não se falar de Mateus quando se fala de questões estruturantes em Linguística portuguesa. É uma vida cheia, um exemplo aos nossos olhos e um aconchego para os nossos corações termos podido conhecê-la, pois pudemos falar de Linguística e da vida com umas das nossas maiores referências na área. Foram, sem dúvida, duas horas muito enriquecedoras ao longo de todo o meu percurso académico.
Não consigo deixar de sentir um vazio tão grande, pelo facto de este período muito conturbado ter sido por mim passado a ler a obra da Professora, a escrever sobre a Professora e a estudar a sua vasta investigação... Ao escrever uma dissertação sobre a hipótese de núcleo vazio na estrutura silábica do português proposta pela Professora desde cedo, é como se nos últimos tempos andasse a dialogar constantemente com a Professora sem efetivamente o fazer. Foi uma perda muito grande. E numa altura tão triste.
ABRALIN
- Por outro lado, com Ana Sousa Dias (https://arquivos.rtp.pt/
- Entrevista a Maria Helena Mateus - Revista Eletrónica de Linguística dos Estudantes da Universidade do Porto (http://ojs.letras.up.pt/index.
- Entrevista a Maria Helena Mateus - 2017 - Elingup (PDF)
Programas de rádio
- Língua de Todos, RDP África, 6.ª feira, 3 de abril, às 13.30. Repete no Sábado.
- Páginas de Português, Antena 2, Domingo, 5 de abril, às 12.30. Repete no Sábado seguinte.